Publicado originalmente no site da revista Época Negócios, Junho/2017.
Comportamento.
Comportamento.
COMO A SUA EMPRESA ENXERGA A DIVERSIDADE?
GAYS E TRANSGÊNEROS – ALÉM DE MULHERES E NEGROS – GANHAM
MAIS ESPAÇO NAS CORPORAÇÕES. E A ASCENSÃO DESSA MINORIA TEM CADA VEZ MENOS A
VER COM O “POLITICAMENTE CORRETO”: É UMA QUESTÃO DE PRODUTIVIDADE E INOVAÇÃO
DUBES SÔNEGO E RAQUEL GRISOTTO. FOTOS ROGÉRIO ALBUQUERQUE.
A atriz Carolina Ferraz não é o que se pode considerar um
alvo típico de ataques preconceituosos. Ícone de beleza e elegância, ela
preenche bem a série de quesitos que, no imaginário brasileiro, formam o
estereótipo da pessoa admirável e bem-sucedida: é branca, magra, talentosa – e
heterossexual, casada, com duas filhas lindas. Talvez por isso tenha causado
tanto mal-estar a muitos empresários quando, tempos atrás, decidiu bater à
porta de alguns deles, pedindo dinheiro para seu mais recente projeto: A Glória
e a Graça, filme no qual interpreta uma travesti.
Em seu périplo por financiamento ouviu de diferentes
executivos frases do tipo: “Você é uma mulher tão bonita, com uma reputação tão
boa. Para que fazer um negócio desses?”. Ou: “Isso vai acabar com a sua
imagem”. Mesmo acostumada a dificuldades na hora de levantar recursos para
montar projetos culturais no Brasil, Carolina, nessa experiência, espantou-se.
“Foi horrível ouvir que fazer uma travesti iria prejudicar minha carreira. Eu
já interpretei uma dondoca horrorosa, que assassinava pessoas para conseguir o
que queria. Por que isso não foi ruim?”, questiona Carolina, referindo-se a
Norma Gusmão, personagem de 2008, que terminou a novela gritando “Eu sou rica”,
tornando clássico o bordão. O conceito de integridade, pelo visto, anda um
pouco distorcido no país. “Parece que, no geral, a sociedade não está preparada
para abraçar as diferenças”, afirma Carolina.
A situação vivida pela atriz retrata uma realidade do mundo
corporativo que, no Brasil, costuma ganhar cores dramáticas: a rejeição de
parte do empresariado a tudo que é considerado minoria ou diferente. A
dificuldade em aceitar lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
(LGBTs) é apenas a parte mais evidente de um dilema que envolve ainda mulheres,
negros e pessoas com deficiência (PcDs).
É comum ouvir por aqui que não existe preconceito contra
negros e que as mulheres têm as mesmas oportunidades de ascensão na carreira.
Ainda assim, as empresas estão longe de representar adequadamente o perfil
demográfico do país em seus quadros. Principalmente, quando se sobe na escala
hierárquica. Em 2016, o Instituto Ethos e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) publicaram um estudo baseado em dados das 500 maiores
empresas brasileiras e descobriram que as mulheres, apesar de representarem
mais da metade da população do país, ocupam somente 13,6% dos cargos de
primeiro escalão. Ainda segundo a pesquisa, apenas 6,3% dos gerentes e 4,7% dos
executivos de alto escalão são negros. Não há dados sobre homossexuais em
cargos de comando – uma vez que até há bem pouco tempo a orientação sexual
sequer estava nas estatísticas das equipes de recursos humanos.
A boa notícia é que o cenário, ainda que lentamente, está
mudando. LGBTs, mulheres e negros começam a ganhar cada vez mais espaço nas
corporações – e a lutar com bem menos receio por igualdade de condições e
respeito no mercado de trabalho. Se você ainda considera todo esse papo “mimimi
de grupos vitimistas”, cuidado. Está na hora de rever seus conceitos – e não
com o propósito de dar uma justificativa à sociedade ou parecer moderninho. Se
a óbvia constatação de que o mundo mudou não lhe parece convincente, então
atente para o seguinte: a diversidade é produtiva e, em muitos casos, indutora
da inovação. É uma equação tão simples quanto efetiva: culturas diferentes +
trajetórias diferentes + visões de mundo diferentes em uma equipe resultam em
uma probabilidade maior de encontrar soluções diversas e criativas para a
empresa, como veremos adiante. Captou?
Questão de talento.
Não por acaso discutir diversidade e inclusão de minorias é
hoje um tema prioritário para um número crescente de grandes corporações – e os
motivos têm pouquíssima relação com o “politicamente correto”. Um estudo da
consultoria McKinsey revela que há uma conexão significativa entre diversidade
e performance financeira das empresas. Depois de avaliar 366 companhias, nos
Estados Unidos, na Inglaterra e em países da América Latina, a conclusão é que
aquelas que possuem o maior número de profissionais considerados diversos
dentro do quadro geral de funcionários são capazes de entregar desempenho até
35% superior à média da indústria como um todo. “Não podemos afirmar que a
relação é de simples causa e consequência”, diz Heloisa Callegaro, líder para
ações de diversidade da consultoria para a América Latina. “Mas dá para dizer
que as companhias mais avançadas na questão de gênero e etnia são também
aquelas que têm um desempenho melhor.”
A Monsanto descobriu há pouco essa relação, na prática. Na
tentativa de aumentar a satisfação de PcDs, mulheres e negros em seus quadros,
a empresa criou um “indexador de diversidade” para identificar as lideranças
mais engajadas com o tema dentro da organização. Acabou percebendo que as
equipes com maior diversidade e com os gestores mais empenhados em promover
inclusão eram as que tinham os melhores resultados. “Em uma escala de zero a
dez, a performance dos times com diversidade chegou a 9, ante a média de 6 dos
demais”, diz Aline Cintra, líder de aquisição de talentos da Monsanto.
Por que as empresas que respeitam a diversidade têm um
desempenho melhor do que a média? Uma das explicações encontradas por
especialistas é esta: porque priorizam o talento, independentemente de qualquer
outra característica do profissional. Ao respeitar as diferenças elas
conseguem, além disso, extrair o melhor de cada um de seus funcionários.
Respeitar a diversidade é cada vez mais importante para
atrair e fazer render uma nova geração de talentos, que já não suporta viver em
empresas com políticas de RH tradicionais e engessadas. Dell Almeyda, de 31
anos, é um exemplo dessa geração – que coloca a liberdade de se expressar como
um dos grandes atributos de uma companhia. Nascido Delvani, ele se diz
andrógeno – identifica-se tanto com o gênero masculino como com o feminino. E
manifesta essa orientação na forma de vestir. “Adoro um salto”, diz. Um dos
responsáveis pelos treinamentos na Atento, empresa de call center, ele recebeu
carta branca para usar as roupas e os acessórios que quiser.
Dell costuma ter reuniões com clientes externos. É comum que
apareça nesses encontros com colares, maquiagem discreta e salto alto. Quase
nunca enfrentou problemas. Em uma ocasião, no entanto, o cliente chiou. “Ele
mandou um e-mail para a minha chefe, reclamando. Foi educado, mas deixou claro
que não havia gostado nada dos meus sapatos”, diz Dell. A líder foi firme e
disse a Dell para continuar atendendo o cliente – e de salto, se quisesse. Para
evitar atritos, porém, Dell preferiu ir na reunião seguinte no estilo
“homenzinho”. Chegou, fez a apresentação e quando voltou, ficou sabendo de um
outro e-mail do cliente: “Por favor, diga ao Dell que ele pode voltar sempre, e
vestido da forma que quiser. Com salto, ou não, ele continua fazendo um ótimo
trabalho”. “Para mim, aquilo foi a glória”, diz Dell. “Não preciso fazer com
que minha orientação sexual e minha preferência por roupas femininas desçam
goela abaixo das pessoas. Eu prefiro o respeito. E foi o que consegui.” Na
farmacêutica onde trabalhava antes, Dell conta que não tinha liberdade para se
expressar da mesma forma. Na Atento, com respaldo da chefia, seu rendimento
aumentou e ele foi promovido duas vezes.
A força dos fatos
Os argumentos a favor da diversidade são poderosos. O mais
óbvio é que ela é simplesmente um fato do mundo contemporâneo. Ignorá-la pode
ser o mesmo que ignorar grupos inteiros de potenciais consumidores. As agências
de publicidade sabem dessa relação de causa e efeito e do descuido ou
desconhecimento de seus clientes sobre o assunto. Talvez por isso tenham sido
as primeiras a colocar a diversidade na mesa. Na década de 80, a grife italiana
Benetton inovou ao abordar temas controversos em suas campanhas, mostrando, por
exemplo, imagens de casais formados por negros e brancos ou pessoas seminuas
identificadas como portadores de HIV. Hoje, são campanhas protagonizadas por
homossexuais as que causam mais discussão. Este ano, durante o Superbowl, o
jogo final da principal liga do futebol americano – um esporte tradicionalmente
associado à virilidade –, foram exibidos filmes publicitários com beijo gay, no
minuto mais caro da TV americana. Sinal dos tempos...
Uma pesquisa realizada pela YouGov e pelo site BabyCenter
(do grupo Johnson & Johnson), chamada “Diversidade familiar é a norma”,
indicou que 80% dos pais de famílias americanas gostam de ver a diversidade
refletida nas famílias mostradas em campanhas publicitárias. O levantamento
mostrou ainda que 66% dos entrevistados disseram que o respeito das marcas por
famílias de todos os tipos é um fator importante para suas decisões de compra.
Além disso, 57% afirmaram que, uma vez que encontram uma marca ou produto
assim, contam aos amigos sobre ele. Resumindo: há um efeito multiplicador no
reconhecimento de empresas que respeitam a diversidade.
No Brasil, marcas como a Skol, da Ambev, e a fabricante de
cosméticos Natura também seguem a tendência em suas campanhas. O que se
verificou com mais força, no entanto, foi a inclusão de mulheres e negros como
protagonistas de vários filmes. Isso responde a uma das transformações mais
evidentes da sociedade na última década – a inclusão de 40 milhões de pessoas
no mercado consumidor, um grupo formado majoritariamente por negros e de
famílias lideradas por mulheres.
No Carrefour, a percepção sobre essas mudanças na sociedade
refletiu-se na política de recursos humanos. A rede varejista começou seu
programa de diversidade por volta de 2010 e colocou como uma de suas
prioridades o aumento de mulheres em cargos de liderança. A estratégia se
consolidou, avançou para outros grupos e alcançou o universo LGBT. “Temos de
agir de forma correta, internamente, se quisermos fazer com que esse público
seja bem tratado e abordado de maneira adequada em nossas lojas”, diz Paulo
Pianez, diretor de sustentabilidade do Carrefour. E a forma de garantir a
eficácia do programa é verticalizar o conceito, ou seja, garantir que pessoas
com esse perfil estejam em vários níveis hierárquicos, sobretudo em cargos de
liderança.
Chances iguais
A relação existente entre diversidade e capacidade de
inovação e solução de problemas também é conhecida. Para ilustrá-la, vale a
analogia com a formação de grandes cidades. Foi o conglomerado de gente
originária de lugares variados, com hábitos e histórias diferentes, que fez de
Londres e Nova York as metrópoles vibrantes que são hoje, afirma o professor
Edward Glaeser, da Universidade Harvard, um dos maiores especialistas em
economia urbana da atualidade. Assim como acontece com as cidades, a
concentração de talentos diversos dentro de empresas, em condições favoráveis,
facilita a troca de informações e tende a ser terreno fértil para o surgimento
de ideias, mais do que quando se têm núcleos homogêneos.
Mesmo profissionais aparentemente menos capacitados podem
trazer vantagens competitivas importantes. Um candidato que tire nota baixa em
um processo de seleção, por exemplo, não é necessariamente o menos adequado
para a empresa. As poucas questões que acertou podem ser justamente as mesmas
que a maioria dos outros candidatos com notas melhores errou. As habilidades,
no caso, seriam complementares. “Se eu quero ser uma empresa que gera conteúdo
diferente, eu preciso ter diversidade em meus quadros”, diz Alessandra Del
Debbio, vice-presidente jurídica e de assuntos corporativos da Microsoft.
Para tentar garantir mais diversidade em seus quadros, a
empresa ampliou o processo de garimpagem de profissionais. No último deles, por
exemplo, foram considerados currículos de candidatos de 69 cursos de 329
faculdades brasileiras. Muitos dos selecionados vieram de escolas que não estão
no topo dos rankings universitários – como a Zumbi dos Palmares, na Zona Norte
de São Paulo. “Não estamos falando em priorizar um outro grupo de pessoas”, diz
Alessandra. “Mas em considerar todos eles, sem preconceitos.” Na Microsoft, o
exemplo faz a diferença. A empresa é comandada no Brasil por Paula Bellizia –
uma das únicas mulheres à frente de gigantes de tecnologia –, e o CEO mundial é
um indiano, Satya Nadella. Há ainda negros e gays em cargos de médio e alto
escalão mundo afora. “Inclusão é uma jornada sem volta”, diz Alessandra.
“Felizmente, estamos avançando.”
Poder de fogo
Desde 1995, o Brasil tem uma lei (a de nº 9029) que prevê
punições às empresas em casos de discriminação por sexo, origem, raça, estado
civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional e idade, tanto
na contratação como na dispensa. Em caso de condenação, as indenizações podem
chegar à casa dos milhões de reais. O valor previsto, geralmente, corresponde
ao dobro do salário por mês, do período do desligamento até a decisão da
Justiça. “A lei tem um papel pedagógico na inclusão, e essas indenizações mais
ainda”, diz Nelson Mannrich, professor da Faculdade de Direito da USP e sócio
do escritório MSV Advogados, especializado em Direito do Trabalho. Há ainda a
Lei de Cotas, criada há 25 anos, que determina que empresas com mais de mil
funcionários tenham uma parcela de pelo menos 5% de funcionários PcDs (com
deficiência física e intelectual). Ambas as leis são instrumentos importantes,
que podem até ajudar, mas estão longe de estimular as empresas a
voluntariamente adotar as práticas de inclusão.
Para se fazer ouvir, quem se sente discriminado tem muito
mais poder de fogo nas redes sociais. Hoje, basta um post para chegar a milhões
de pessoas, que podem aderir à causa e compartilhar textos, vídeos, áudios e
memes com um simples clique. Pode ser o suficiente para elevar ou acabar com a
reputação de uma empresa. A italiana Barilla, fabricante de massas, aprendeu a
lição do jeito mais duro. Em 2013, o presidente do grupo, Guido Barilla,
declarou em entrevista a uma rádio italiana que jamais faria uma campanha
publicitária com uma família homossexual. E que os gays que achassem ruim
poderiam consumir produtos de outras marcas. Pouco depois, diante de críticas
massivas e de um boicote em nível mundial, Guido Barilla teve de pedir
desculpas publicamente não uma, mas duas vezes. O arranhão na imagem também
levou a companhia a mudar radicalmente sua política de diversidade. Semanas
depois do tropeço, a Barilla contratou um diretor de diversidade e fez uma
campanha sobre a importância da inclusão LGBT.
“A discussão sobre diversidade ganhou força, velocidade e
amplitude com as redes sociais”, diz Fabio Mariano, professor da ESPM e doutor
em sociologia do consumo. Com vários relatos circulando por aí, as empresas têm
de se preocupar de fato em conciliar discurso e prática. “Se elas dizem que
abraçam a igualdade de oportunidades e a meritocracia precisam mostrar isso em
ações, porque os grupos excluídos vão estar atentos”, diz Mariano.
Questão antiga
Em países da Europa e nos Estados Unidos, a discussão sobre
inclusão é antiga. Começou a ser forjada ainda nos anos 60, por pressão de
movimentos feministas e de direitos civis dos negros – que, mais tarde, passaram
a reivindicar também espaço para homossexuais, trans, portadores de deficiência
e outros grupos vítimas de discriminação. No Brasil, as mudanças econômicas na
última década e a ascensão de um grande grupo de pessoas às universidades
permitiram que a discussão sobre diversidade ganhasse corpo. “Apesar da crise
atual, os avanços de muitas camadas sociais no período recente são inegáveis”,
diz Judith Morrison, assessora da divisão de gênero e diversidade do BID. “Isso
deu voz a pessoas antes completamente marginalizadas e colocou o debate sobre
diversidade em um nível muito mais sofisticado no país.” Por ora, são as
multinacionais que puxam esse movimento no Brasil, como Microsoft, IBM, White
Martins, Unilever, Coca-Cola e GE. Cada uma à sua maneira, elas vêm
desenvolvendo uma série de ações para incorporar a diversidade no dia a dia da
operação – começando por desmontar muitos preconceitos da própria equipe e de
gestores. Juntas, elas discutem as iniciativas por meio de fóruns para entender
como avançar no tema. Hoje, há dois grupos bem fortalecidos no Brasil para
congregar essas companhias – Coalizão Empresarial para Equidade Racial e de
Gênero, do Instituto Ethos e do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades (CEERT) e o Fórum de Empresas e Direitos LGBT. “Quando começamos
o programa, em 2013, eram poucos os CEOS que se envolviam na discussão”, diz
Reinaldo Bulgarelli, secretário executivo do Fórum. “Hoje, são eles que tomam
as principais iniciativas e cobram de seus diretores proatividade no assunto.”
Atualmente, 39 empresas compõem o time liderado por Bulgarelli.
Apesar do cenário mais promissor, mudar a postura das
empresas no Brasil exige muito mais do que boas intenções. “O primeiro esforço
deve começar no recrutamento e seleção”, diz Flávia Gonçalves, gerente da área
de engajamento da consultoria Korn Ferry Hay Group. Gestores com baixa
diversidade em suas equipes costumam justificar a falha com o argumento de que
“até procuraram profissionais em classes de minoria, mas não encontram gente
suficientemente qualificada para a vaga”. “É desculpa”, diz Flávia. Nos últimos
dez anos, o percentual de jovens negros e pardos que chegaram ao ensino
superior mais que dobrou no Brasil – e hoje eles ocupam quase metade das vagas
nas universidades federais. As mulheres, em 20 anos, atingiram nível de
escolaridade maior que o dos homens e graduaram-se com notas mais altas. “E
todos eles estão ávidos para ingressar no mercado de trabalho”, diz Flávia.
Alguns recrutadores devem estar procurando no lugar errado, só pode ser isso.
Ironias à parte, o que explica a baixa participação de
mulheres e negros no mercado de trabalho – e a quase ausência deles em cargos
de chefia – é simples: preconceito. Ele é manifestado nas corporações das
formas mais sutis. É o que os especialistas classificam como viés inconsciente
do líder ou empregador. “As pessoas dizem que não têm preconceito e,
conscientemente, talvez se esforcem para não ter mesmo”, diz Flávia. “Mas em
várias situações acabam preterindo profissionais por considerar clichês como
verdades.” Alguns exemplos: achar que os negros têm baixa escolaridade, que as
mulheres estão mais preocupadas em casar e cuidar dos filhos do que em fazer
carreira, que não servem para liderar e que é muito natural que ganhem menos que
os homens. Há ainda uma tendência dos líderes em contratar seus iguais –
simplesmente porque dá bem menos trabalho comandar pessoas cujas
características lhes são familiares. Se a maior parte dos cargos de gestão é
ocupada por homens, brancos e que se dizem héteros, é esse perfil de
profissional que eles vão contratar e promover com mais facilidade.
Para driblar barreiras como essas, as empresas insistem
bastante num ponto: a necessidade de buscar esclarecimento. “Oferecemos
cartilhas e palestras para falar de equidade de gênero e direitos de minorias”,
diz Cristina Fernandes, diretora da White Martins. “É quase uma aula de
cidadania.” Desde que as ações começaram a ser implementadas, em 2010, a
participação das mulheres em cargos de supervisão aumentou 79% e mais que
dobrou nas diretorias. A meta agora é aumentar a promoção de negros e a
aceitação de gays na companhia. “Eles já trabalham aqui, mas queremos que
tenham liberdade para assumir a orientação sexual, se assim preferirem”, diz
Cristina.
Fazer com que o profissional LGBT sinta-se à vontade para
assumir sua orientação sexual ou identidade de gênero dentro da empresa ainda é
uma tarefa árdua para muitas equipes de recursos humanos. Para avançar nesse
campo, a IBM criou uma espécie de mentoria reversa, que coloca profissionais
LGBT ou de quaisquer outros grupos de minoria para conversas particulares com
líderes. “São discutidas questões relacionadas à rotina do negócio, mas é
também uma sessão franca na qual o funcionário conta um pouco de sua história e
do que enfrentou ao longo da vida por ser gay ou trans”, diz Adriana Ferreira,
líder de diversidade da IBM. “Isso ajuda a criar empatia entre equipe e
líderes.”
Os casos de transexuais são particularmente delicados.
Muitos sofrem um preconceito tão severo da sociedade – e, com frequência, dos
próprios familiares – que acabam tendo menos condições de se preparar para o
mercado de trabalho. “São vários os casos de quem é expulsa de casa desde muito
cedo”, diz Majo Martinez, diretora de RH da Atento. “Sem amparo econômico e
emocional, muitas param de estudar, não têm como buscar qualificação e acabam
sendo jogadas na marginalidade.” Felizmente, há cada vez mais exceções. Para
esta reportagem, foram ouvidos alguns casos que fogem à regra – como o de
Márcia Rocha, a primeira advogada brasileira a ter direito de usar seu nome
social no registro da OAB (leia depoimentos no fim da reportagem).
O líder inclusivo
Na busca por uma empresa mais inclusiva, poucas coisas são
tão fundamentais como o real interesse das lideranças pelo tema. Serão esses
profissionais os responsáveis por chancelar as ações institucionais internas de
valorização da diversidade e de explicar os motivos por trás das mudanças, de
forma clara e concreta, gerando motivação nas equipes. “Os CEOs têm de se
engajar na causa. Do contrário, a gente não vai conseguir avançar”, diz Theo
van der Loo, presidente do Grupo Bayer do Brasil. Recentemente, Van der Loo foi
a público nas redes sociais para denunciar o caso sofrido por um colega negro.
De acordo com o relato, o amigo teria ouvido durante um processo de seleção
para um cargo executivo na área de TI de uma grande companhia de tecnologia a
seguinte frase, de um dos recrutadores: “Eu não entrevisto negros”.
A postura de Van der Loo está em alta no mercado.
Levantamento da Korn Ferry Hay Group baseado em dados de 20 milhões de
profissionais, de 25 mil organizações, em 110 países, indicou que o perfil do
líder do século 21 é o de um profissional muito mais aberto e acostumado a
lidar com diferenças.
Apoio dos CEOs
Trazer diversidade à empresa requer trabalho duro – muito
mais do que boas intenções. É que os resultados, frequentemente, demoram a
aparecer – e, por vezes, sequer aparecem. Em seu livro Driven By Difference –
How Great Companies Fuel Innovation through Diverisity (“Guiado pela diferença
– como as grandes empresas promovem a inovação por meio da diversidade”, em
tradução livre), David Livermore, um dos maiores especialistas em inteligência
cultural, aponta motivos para o fracasso de algumas políticas de inclusão das
companhias. A principal razão, ele argumenta, é justamente a falta de
compreensão sobre a necessidade de maturação dos programas. Para que as equipes
consigam alcançar um alto grau de criatividade, elas precisam permanecer juntas
por algum tempo até que todos os “diferentes” consigam confiar uns nos outros.
O segundo motivo de fracasso é de responsabilidade exclusiva das companhias –
elas abrem as portas da empresa para a diversidade, mas não se preparam de
forma adequada para aceitar e receber o diferente.
Ainda há um longo caminho a ser percorrido. De acordo com o
estudo do Instituto Ethos e do BID, a maior parte das 500 maiores empresas brasileiras
não tem ações afirmativas para incentivar a presença de mulheres e negros em
seus quadros. Quando têm, na maioria dos casos, as ações costumam ser isoladas,
sem uma política perene, incorporada à estratégia da companhia. A boa notícia é
que, ainda que seja longo, o caminho da diversidade parece ser irreversível.
Depois de ganharem as ruas e convencerem a sociedade da legitimidade de suas
demandas, mulheres, negros, LGBTs e outras minorias começam agora a contar com
novos e poderosos aliados à frente de grandes companhias. CEOs como Theo van
der Loo, da Bayer, Paula Bellizia, da Microsoft, e Fabian Gil, da Dow, não
perdem a oportunidade de falar sobre o tema e, em alguns casos, levar a questão
a encontros com representantes dos poderes Legislativo e Executivo. Entre os
pleitos, a aprovação de projetos de lei como o que criminaliza a homofobia.
“Não adianta a pessoa ter segurança na empresa se, quando sai, é espancada no
ponto de ônibus, ou maltratada dentro da própria casa”, diz Bulgarelli, do
Fórum de Empresas e Direitos LGBTs. Em uma era de recrudescimento da xenofobia
e de manifestações explícitas de intolerância, a percepção das empresas de que
têm muito a ganhar com a diversidade é, sem dúvida, algo a comemorar.
"Sou a primeira trans com nome social na OAB"
Márcia Rocha, 52 anos l Advogada e empresária
Desde pequena, sentia ser feminina, mas comecei a minha
hormonização definitiva somente aos 39 anos. Além da pressão do meu pai, que
ficava tentando me convencer de que eu era homem, havia ainda outra coisa confusa:
o fato de eu gostar de mulheres, apesar de me sentir mulher também. Só resolvi
minhas questões depois de estudar muito sobre sexualidade e conversar com
especialistas. Felizmente, consegui ter uma boa formação. Sou trilíngue,
advogada e dona de quatro empresas. Mas essa não é a realidade da maioria das
trans. Por isso, achava que precisava fazer mais pelo movimento. Sou a primeira
trans a ter meu nome social na certidão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
É uma conquista importante. Tenho um assento na World Association For Sexual
Health, sou da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB.
Recentemente, juntei-me à cartunista Laerte Coutinho e mais duas profissionais
para fundar a Associação Brasileira dos Transgêneros (Abrat). Além de realizada
profissionalmente, tenho uma família muito interessante. Somos duas lésbicas,
sendo uma travesti, mais a minha filha de um casamento anterior. Isso me faz
acreditar que tudo é possível.
“Queriam tirar o demônio de mim”
Dell Almeyda, 31 anos l Técnico de treinamento – Atento
Sei que sou gay desde os 9 anos. No início, pensava: “não
sou veado, não quero ser veado”. Demorou para eu entender que a orientação
sexual não é uma escolha. Minha família toda – e eu também – somos muito
religiosos. Na primeira igreja que frequentei, o pastor me submeteu até a uma
sessão de exorcismo para espantar “o demônio” que ele dizia existir em mim. Eu
sabia que não tinha demônio algum, mas aceitava. Me esforcei para parecer
“homenzinho” e namorei mulher. Mas, no fundo, sabia que não era essa a minha
natureza. Isso tudo gerava muito conflito. Continuo acreditando em Deus, mas
hoje frequento um grupo de Teologia da Libertação, que não associa a
homossexualidade a algo ruim. Sou cristão, evangélico, gay e tenho uma
identidade de gênero andrógena ou queer. Sinto-me à vontade como homem ou
mulher porque sei que as coisas vão muito além dessa questão binária. Ter um
emprego onde eu posso expressar tudo isso, sem fingimentos, é maravilhoso.
Ajudou até mesmo na aceitação dos outros em relação à minha identidade. Aqui na
Atento, posso usar meu nome social no crachá, maquiagem e, claro, meus saltos,
que adoro tanto. E se aparecer de terno e gravata no dia seguinte ninguém vai
estranhar.
“Não encontrava emprego. Pensei em me matar”
Luana Azevedo, 21 anos l Operadora de caixa – Carrefour
Nunca me identifiquei com meu órgão sexual e o modo como eu
era tratada. Quando criança, as pessoas me obrigavam a fazer coisas de menino.
Eu ainda não sabia a diferença entre homem e mulher. Algumas amigas diziam que
eu era travesti. Mas eu não me identificava. Aí, fui pesquisar no Google para
tentar entender um pouco mais sobre pessoas trans. Comecei o tratamento
hormonal somente aos 18 anos. Antes, minha mãe não deixava. Quando terminei a
escola, iniciei a minha busca por emprego. Queria estudar mais, me qualificar
e, para isso, precisava de um trabalho. Eu deixava currículo em vários lugares,
só que a imagem que viam não condizia com o nome no papel. Quando percebi que
podia não estar encontrando emprego por causa do preconceito, tive vontade de
me matar. Não o fiz por pena da minha mãe. Então, uma amiga dela me indicou o
Carrefour. Quando cheguei para a seleção e a entrevistadora me pediu desculpas
por ter me chamado pelo nome do currículo e não por meu nome social, eu nem
acreditei. Agora, a meta é juntar dinheiro para fazer faculdade de psicologia,
estudar inglês e, quem sabe, morar um tempo no exterior. Está difícil. Mas, sem
meu emprego, eu nem poderia sonhar com essas coisas.
“Na IBM, posso ser quem eu realmente sou”
Gustavo Gonzalez Prates, 26 anos l Gerente de contratos -
IBM
Já na infância eu notava que me sentia melhor quando estava
com os meninos. Eu não me via como menina. Gostava de jogar bola e usar as
roupas que eles usavam. Aos 9 anos, quando minha mãe morreu e passei a ser
cuidado pela minha irmã, entrei para uma escola particular. Por incentivo dela,
ia às aulas de cabelo escovado ou rabo de cavalo, brinco na orelha, para
parecer mais feminina. Mas chegando lá desmanchava tudo. Nos anos seguintes,
passei por várias escolas, não dava certo em nenhuma. Até que aos 14 anos
entendi que gostava de meninas – eu era homossexual. Os anos seguintes foram de
libertação. Cortei o cabelo, passei a comprar roupas na seção masculina e a me
sentir bem. Assim fui crescendo, me achando homossexual. Entrei para a IBM aos
23 anos. No ano passado, uma colega de equipe me perguntou: “você já parou para
pensar que pode ser transgênero?”. Eu nem sabia o que significava isso.
Pesquisei, busquei ajuda psicológica, conheci transgêneros e comecei a compreender
a mim mesmo. Só aí fui entender que eu poderia mudar de nome e mudar, com
tratamentos, as coisas que eu não gosto em mim, como a voz. Fui recebido de
braços abertos na empresa. Na IBM, percebi que eu poderia ser quem eu realmente
era.
“Inspirei outras trans a buscar emprego”
Uni Corrêa, 30 anos l Modelo e consultora de estilo
Já senti muita vergonha – não de ser eu, mas da imagem que
as pessoas têm do que é ser trans. Tinha necessidade de ficar provando para
todo mundo, o tempo todo, que minha identidade de gênero não tinha nada a ver
com querer trabalhar com sexo. Desde criança eu tentei parecer menina. Lembro
que, aos 12 anos, no meu primeiro dia de aula em uma escola nova, a professora
me chamou pelo nome de batismo (que ela não revela) e todos da classe riram.
Eles achavam que eu era uma garota. Aquilo me encheu de alegria. Sou do
interior do Rio Grande do Sul, cheguei em São Paulo em 2004, aos 19 anos e,
mesmo aqui, não havia muitas opções de trabalho para as trans. Muitas meninas acabavam
vendo a prostituição como único caminho. Hoje, tenho um trabalho legal ligado a
moda, com passagens por várias grandes marcas, como Reinaldo Lourenço, Heloisa
Faria e Coven. Estou feliz. Mas a batalha é dura. Se durante minha adolescência
eu tivesse exemplos de trans bem-sucedidas em várias profissões, talvez tivesse
me tornado médica ou advogada. Quando eu trabalhava na Reinaldo Lourenço, soube
que uma trans deixou currículo na loja por minha causa. Aquilo me tocou. De alguma maneira, eu fui
essa referência.
“Não, eu não preciso de um computador da Nasa"
Erivaldo Paz, 33 anos l Analista de processos – Monsanto
Aos 13 anos, sofri uma descarga elétrica empinando pipa e
tive os dois braços amputados. Desde então, faço tudo com os pés. Comecei a
treinar essa habilidade jogando videogame. No início, foi difícil. Tinha
câimbras, sentia muita dor. Mas, aos 14 anos, já podia escrever e fazer várias
outras coisas sozinho. Quando comecei a procurar emprego, a lei de cotas já
existia, mas as empresas não estavam preparadas para receber pessoas com
limitação. Como digito com os pés, eles pensavam que iam ter de gastar dinheiro
para comprar um computador da Nasa, sei lá. Mas eu uso teclado e mouse comuns.
Gente como eu precisa primeiro provar que pode fazer, somente depois mostrar
que sabe. No meu primeiro emprego, ouvi: “Isso aqui não é instituição de
caridade. Ou você entrega ou está fora”. Foi duro. Mas achei ótimo ser tratado
de “igual para igual”. Fiz administração, estudo inglês e trabalho na Monsanto
há nove meses. Com os pés, crio relatórios sobre a safra que iremos vender em
2020. Sinto-me desafiado. A contratação precisa ser boa para os dois lados. Se
a empresa quiser somente cumprir a lei, vai fazer mal para a pessoa com
limitação. É melhor falar um não para que ela possa buscar oportunidade em
outro lugar.
“Você tem mesmo de usar esse véu?”
Renata Nached Serhal,
37 anos l Coordenadora regional – Drogaria Carrefour
Minha família é de origem libanesa e brasileira. Sou
muçulmana sunita e uso hijab [o véu sobre a cabeça]. Meu marido também é
muçulmano. Quando saí do colégio, não sabia bem o que fazer. Fiz faculdade de
administração e pós-graduação em comércio exterior. Mas meu sonho sempre foi
estudar farmácia, que, na época, era um curso em tempo integral – inviável ,
pois eu precisava trabalhar. Depois de alguns anos, surgiram opções de manhã e
à tarde. Cursei. No segundo semestre, comecei a procurar emprego na área.
Quando eu mandava meu currículo sem foto, as empresas me chamavam. Chegava lá,
usando o hijab, e os recrutadores perguntavam: “Mas você tem de usar isso?”.
Antes, eu já tinha trabalhado no Bradesco e na BCP, que depois virou Claro, sem
o hijab. Mas agora já tinha um currículo melhor e dizia que não gostaria de
tirá-lo para trabalhar. Passei meses sem conseguir emprego. Então, resolvi
mandar o currículo só para multinacionais com operações em países árabes. No
Carrefour, me chamaram. Estou aqui há nove anos e já fui promovida cinco vezes.
Com o tempo, ganhei projeção e recebi propostas salariais melhores, de empresas
que antes me recusaram. Dispensei. Porque aqui me aceitaram quando ninguém me
quis.
“No Brasil, convivo com o fato de ser sempre exceção”
Mauricio Rodrigues, de 42 anos l CFO América do Sul –
Monsanto
Venho de uma família de classe média. Mas nunca foi fácil.
Estudei no Colégio Bandeirantes, em uma época em que devia ser o único negro
por lá. Existia um preconceito, que surge por razões que hoje são óbvias para
mim. Se as pessoas não são expostas ao que é diferente, elas não têm condições
de estar abertas ao novo. Minha família me instruiu a conquistar meu espaço por
meio do esforço. Então eu sentia que tinha de estudar mais e me destacar, para
não reforçar o pensamento de que negro tem menos capacidade. Foi assim na Poli
e no IBMEC (atual Insper), fiquei sempre entre os melhores da classe. Senti a
diferença quando fui para Atlanta, nos EUA, que tem uma população negra grande.
Lembro que cheguei a dizer ao meu pai: “Hoje vi negros andando de Porsche, de
Ferrari”. Aquilo me deixou muito feliz. Eu pensei: “É isso que eu sonho para o
meu país”. Só que quando voltei, fiquei muito crítico. Aqui você tem de
conviver com o fato de ser sempre a exceção. Em grandes eventos, já aconteceu
de me perguntarem: “Vem cá, onde eu deixo o carro?”. Você tem de estar
preparado e bem consigo mesmo. Como gestor, não me importo com a cor ou
orientação sexual. Estou interessado na capacidade de entrega.
Colaboraram nesta reportagem: Anaís Motta, Barbara
Bigarelli, Daniela Frabasile, Edson Caldas, Nayara Fraga e Soraia Yoshida
Texto e imagens reproduzidos do site: epocanegocios.globo.com
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