terça-feira, 3 de abril de 2018

Geovani Martins: como a favela me fez escritor

Geovani Martins teve como leitores de seu primeiro livro Chico Buarque, Fernando Meirelles, Walter e João Moreira Salles (Foto: Adriana Lorete)

A Remington 22 que Geovani ganhou da mãe e do padrasto o fez “pirar na hora” 

Geovani diz que o desespero o motivou a escrever. Estava desempregado, 
sem profissão  e sendo obrigado a mudar-se de casa 

A estante de livros de Geovani em sua casa no Vidigal 

Visão do Vidigal. A mudança para a favela está na gênese do livro de Geovani
Fotos: Adriana Lorete

Publicado originalmente no site da revista Época, em 06/03/2018 


Geovani Martins: como a favela me fez escritor

As cores, os sons, os dribles de corpo, as diferentes linguagens e até o sol
que queima de um jeito diferente me transformaram num autor

Por Geovani Martins 

Nasci em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, no dia 18 de julho de 1991. Em 2004, aos 13 anos de idade, mudei com minha mãe e meus irmãos para o Vidigal, na Zona Sul da cidade. Destaco esses lugares e essas datas para dizer que, às vésperas do lançamento de O sol na cabeça, meu primeiro livro, a ser publicado em março pela Companhia das Letras, posso afirmar que a gênese dos 13 contos foi o choque provocado por essa mudança.

Era tudo diferente: o jeito de falar, de brincar na rua, as regras no futebol, os dribles de corpo, as pipas, a música, o ritmo das pessoas, o volume dos gritos, até o sol parecia queimar de outra forma. Eu ficava no meio, tentando me adaptar, fazer novos amigos e, ao mesmo tempo, sentia saudade, queria voltar para Bangu, para minha Rua Araruama, onde todo mundo me conhecia e eu conhecia todo mundo. Passei toda a adolescência nesse trânsito. Às vezes voltava a morar com meus avós em Bangu, passava uns meses e depois voltava para o Vidigal, normalmente no verão, sentindo saudade da praia.

Independentemente de onde estivesse morando, uma coisa era certa: no fim de semana eu sempre ia visitar meu outro pedaço de cidade. Sem um centavo no bolso, atravessava o Rio pedindo carona com meu irmão quatro anos mais novo. Naquela época, pegávamos sempre o hoje extinto 756, ônibus histórico para os rolezinhos da minha geração, por ligar Senador Camará à Barra da Tijuca, passando por Bangu, Realengo, Sulacap, Catonho, Taquara e Cidade de Deus. Ele ia e voltava daquele jeito.

Depois dessa primeira mudança encarei mais umas tantas; até o ano de 2015 já havia me mudado 17 vezes. A partir desse trânsito constante entre tantas casas, becos, ruas e praças, e depois com a oportunidade de participar da Festa Literária das Periferias (Flup) e visitar a cada sábado uma favela diferente parti para o livro com a ideia de que a periferia precisa ser tratada sempre como algo em movimento e que não podia mais ser considerada sinônimo de favela. A favela hoje é centro, gira em torno de si, produz cultura e movimenta a economia. O favelado cria e consome como qualquer outra pessoa do planeta. E quando digo consome, não me refiro apenas a Nike, Adidas, Kenner, Honda, Black Label, Red Bull, Samsung, Sony, Microsoft. Falo também da cultura pop que faz a cabeça dos jovens do mundo todo, os filmes e as séries de sucesso mundial que bombam nas telas das smart tvs de meus amigos. Shakespeare, Frida Kahlo e Machado de Assis também encontram seus públicos por becos e vielas. Os exemplos são praticamente infinitos e para fechar com um interessante cito a menina Eva, que conheci numa das edições da revista Setor x. Nascida e criada em Manguinhos, Eva tem como ritmo musical favorito o rock sul-coreano. E segue o baile.

Paralelo a isso, é possível enxergar em cada casa um epicentro. Histórias de muitos Brasis se cruzando, reinventando a língua por meio do encontro. A pesquisa que fiz sobre a linguagem que usaria nos contos do livro veio a partir dessa ideia. É claro que me ajudou, e muito, o fato de eu falar usando as gírias dos personagens do livro. Tenho facilidade para me adaptar às muitas formas de falar o português brasileiro e como já morei em favelas sob comando de todas as três facções do Rio, e ainda numa dominada pela milícia, acabei tendo contato com as particularidades de cada região. Mas transformar isso em literatura não é fácil.

Tentei construir os personagens de todos os contos a partir dessa premissa. Independentemente do tom que escolhesse para contar determinada história, ele nunca poderia ser uma coisa só. Onde a linguagem ia para o português mais canônico, eu fazia questão de inserir gírias e expressões populares. Onde usava e abusava da oralidade para contar uma história, sempre havia espaço para uma palavra mais recorrente ao português formal. Isso resultou numa série de perguntas sobre verossimilhança, se aqueles personagens falariam daquele jeito. Continuo achando que sim. Os personagens do livro são todos baseados em seres humanos, complexos e imprevisíveis por natureza.

Hoje, pensando sobre todas essas motivações, não posso descartar uma, determinante: o desespero. Estava com 24 anos, desempregado, sem profissão, sendo obrigado a mudar da casa onde vivia. Naquele ano de 2015 havia participado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), apresentando com meus colegas as revistas Setor x, produzidas na Rocinha, em Manguinhos e no Complexo do Alemão. Muita gente gostou da mesa e veio falar com a gente, desde possíveis leitores a profissionais do mercado editorial. Na época, eu não tinha um trabalho pronto para mostrar, não tinha nem mesmo um projeto em andamento, e isso me fez sair de Paraty com a determinação de que, quando aparecesse outra oportunidade, estaria preparado.

Convenci minha mãe a mais uma vez apostar em mim. Disse a ela: preciso ficar um tempo sem trabalhar para escrever um livro, e esse livro vai mudar minha vida. Dona Neide mais uma vez abraçou o papo. Comecei a escrever um romance. Desde 2013, quando participei da Flup pela primeira vez, escrevia contos, mas muita gente me dizia que seria difícil conseguir uma editora para publicar um livro de contos, a não ser que eu estivesse disposto a pagar pela edição, o que estava completamente fora da minha realidade.

O problema era que o romance não andava, estava tudo muito forçado, e por sorte não demorei para perceber. No meio disso, apareceu um concurso de minicontos de suspense da Biblioteca Parque Estadual, no centro do Rio, que oferecia bicicletas aos vencedores. Para esse concurso, escrevi o conto “Primeiro dia”, em 40 linhas — que era o limite do texto —, e levei a bicicleta para casa.

Para acabar de vez com minhas pretensões de fazer um romance, meu computador parou de funcionar. Fiquei dias pensando no que fazer, pensando em arrumar um emprego, alugar uma casa. Por mais que me desse muito bem com minha mãe, voltar a morar com ela depois de tantos anos, e sobretudo naquela situação de dependência, era complicado. Até que um dia, voltando da Feira de São Cristovão, minha mãe e meu padrasto me trouxeram uma máquina de escrever. Uma Remington 22 funcionando perfeitamente e com tinta. Pirei na hora. No mesmo dia comecei a escrever um conto novo, chamado “A viagem”, que acabou entrando no livro.

A biblioteca abriu um novo concurso de minicontos. Histórias de verão deveriam ser contadas em até 40 linhas. Fazia tempo vinha pensando em escrever sobre as tensões provocadas por uma praia lotada, e foi aí que escrevi em 40 linhas a primeira versão do “Rolézim” (título do conto que abre O sol na cabeça. Ele narra o dia de garotos da periferia na praia e é marcado pela experimentação da linguagem e pelo uso de gírias). Achei que a história tinha potencial, mas não gostava do texto e acabei não mandando para o concurso. Passadas algumas semanas, depois de um dia inteiro conversando com meu irmão que trabalhava na praia, voltei ao conto. Foi uma escola. Passava dias inteiros escrevendo e reescrevendo. Percebi que o processo de escrever à mão e depois bater à máquina possibilitava um cuidado muito maior com cada palavra ou pontuação. Levei mais de três meses para concluir o texto, mas quando terminei tive a certeza de que deveria fazer um livro de contos.

Escrever o “Rolézim” me ajudou muito; tanto para definir o conceito e a estrutura do livro quanto no entendimento do próprio gênero literário. Ainda assim, cada história foi um parto. Trabalhava na máquina de escrever de seis a oito horas por dia, de segunda a sexta-feira. No fim de semana, tentava me distrair, evitava pegar no caderno ou na Remington. Mas a verdade é que passava boa parte desse tempo imaginando histórias possíveis, montando personagens, costurando frases que ouvia pelas ruas, consertando coisas, organizando argumentos, trocando uma palavra por outra.

Passei o ano de 2016 mergulhado nos universos de cada conto. No final do ano, a falta de grana me fez aceitar o convite de meu irmão para trabalhar numa barraca de praia durante o verão. Com o dinheiro da praia, consegui alugar um quarto na Rocinha e comprar a mobília. Mas era impossível conciliar o emprego com o trabalho literário, tendo em vista que tinha uma carga horária de mais de 12 horas por dia. O livro então ficou na gaveta até março de 2017, quando fui convidado para participar da programação paralela da Flip.

Depois do convite, larguei o trabalho na praia e me dediquei à finalização do livro, revisei o que estava pronto e ainda escrevi mais três histórias que já vinham me assombrando havia tempos: “Espiral”, “Travessia” e “Sextou” (contos incluídos em O sol na cabeça). Levei o livro debaixo do braço na intenção de conhecer editores possíveis durante o festival. Isso aconteceu de uma maneira muito mais fácil do que eu imaginava. O Antonio Prata, escritor e mediador da mesa de que participei, já havia lido os contos que mandei para a produção do evento, se interessou e acabou falando sobre mim com o Ricardo Teperman, seu editor na Companhia das Letras. O Ricardo assistiu à mesa, conversamos e uma semana depois assinamos o contrato de edição do livro.

De lá para cá, muita coisa aconteceu: O sol na cabeça teve por leitores iniciais nomes como Chico Buarque, João Moreira Salles, Fernando Meirelles, Walter Salles… Foi vendido até o momento para nove países e seus direitos foram vendidos para o cinema. De minha parte, acho que o melhor nisso tudo é carregar a certeza de não ter quebrado a promessa que fiz a minha mãe.

Geovani Martins tem 26 anos e é carioca. Descobriu­-se escritor ao participar da Festa Literária das Periferias (Flup). Neste mês publica seu primeiro livro, O sol na cabeça, composto de 13 contos sobre as vivências dos jovens das periferias. Marcadas por uma linguagem original, as narrativas incorporam as gírias urbanas. Antes mesmo de chegar às livrarias brasileiras, o livro já foi vendido para nove países — a China, inclusive. Os direitos de adaptação cinematográfica foram adquiridos pelo produtor Rodrigo Teixeira. Karim Aïnouz será o diretor

Texto e imagens reproduzidos do site: epoca.globo.com

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