Publicado originalmente no site Página B em, 15/09/2017.
'Quanto mais falarmos, melhor'
O caso Santander acende sinal de alerta e nos traz um
questionamento: qual tipo de sociedade queremos?
Por Maria Hirszman.
Passados alguns dias do encerramento precipitado da
exposição "Queermuseu: Cartografias da diferença na arte brasileira”, em
Porto Alegre, torna-se necessário tirar algumas conclusões sobre esse
traumático processo e aproveitar esse raro momento de indignação no meio
cultural para iluminar problemas e fomentar o debate numa sociedade tão avessa
ao diálogo como o Brasil atual. Dentre os diversos sintomas de mal-estar
revelados por essa crise estão o divórcio entre público e o meio artístico, a
falta de transparência na gestão cultural e a transformação de questões densas
como a investigação poética acerca do universo queer em um mero efeito
propagandístico.
Como já foi noticiado à exaustão, a mostra – que deveria
ficar em cartaz até o próximo dia 8 de outubro – foi encerrada às pressas pelo
Santander Cultural depois de uma forte e intempestiva pressão por parte de
movimentos conservadores, liderados pelo MBL. Assédio contra funcionários e
visitantes, pressão via mídias sociais e internet, ameaça de boicote ao banco e
inclusive pichações em agência bancária nas proximidades do espaço cultural
foram as armas usadas para conseguir rapidamente e sem contra-argumentação o
encerramento imediato da exposição, acusada de promover a zoofilia, pedofilia e
blasfêmia.
A análise fria das quase 270 obras, de mais de 80 autores
diferentes, evidencia o exagero nas acusações. Uma dupla de promotores chegou a
visitar a mostra em busca de indícios criminais e constatou apenas a presença
de algumas poucas obras de cunho sexual e nenhuma contravenção legal. Da mesma
maneira, dezenas de textos publicados por especialistas, na mídia ou veiculados
nas redes sociais, mostram a falta de fundamento da ideia de "Queermuseu”
como uma manifestação desrespeitosa. As obras em questão inserem-se na larga
tradição de representação mais explícita da atividade sexual – presente desde
sempre em diversas culturas. Os comentários – afora alguns conselhos cautelosos
de uso de sinalização de faixa etária e eventual separação de obras mais
polêmicas em recinto à parte – são unânimes em alertar para os riscos
crescentes de uma política repressiva em relação às artes e a à cultura em
geral.
Não chega a ser surpresa que um público mal informado – e
mal formado – reaja intempestivamente contra aquilo que desconhece e que
estranha. A leitura de imagens não pode ser feita de forma rasa ou literal e
exige treino para perceber sutilezas ao invés de obviedades. Assim como não se
pode considerar piromaníaco o artista que pinta um incêndio ou um defensor da
prostituição quem retrata cenas de mulheres nos cabarés.
É indiscutível, por exemplo, que o incômodo causado pelas
obras deriva de uma leitura superficial, preconceituosa e autoritária das
imagens. Trabalhos como “Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, de Fernando
Basil, é na verdade uma fusão irônica entre as culturas católica e hindu,
permeada por símbolos da cultura de massas – como que a reforçar o caráter idólatra,
tanto do mercado como das religiões – ou até mesmo "Et Verbum”, de Antonio
Obá (a mais agressiva das obras ao associar palavras como vulva e língua à
hóstia) não podem ser considerados ofensivos num país que se diz laico.
"Travesti da Lambada e deusa das águas”, de Bia Leite,
vista como uma apologia à pedofília, nada mais é do que uma forma de denunciar
o sofrimento de crianças que não se encaixam no padrão dominante de
sexualidade. E as cenas de sexo retratadas por Adriana Varejão em "cenas
do Interior II” estão muito longe de ser uma "defesa” da zoofilia, como
dizem seus detratores. Na verdade, ao parodiar, recontextualizar criticamente,
referências diversas de um vasto repertório visual, que inclui desde a arte
chinesa até elementos tirados da iconografia do período colonial, ela revela o
que há de oculto e perverso nos sistemas de dominação de cor, raça ou gênero.
Talvez seja exatamente aí, na denúncia de um sistema de opressão que se quer
perpetuar, que resida o profundo incômodo que seu trabalho acabara por gerar.
Por isso, como diz a própria artista, quanto mais falarmos sobre isso, melhor”.
No entanto, o mais espantoso nesta história é a virulência
do movimento repressivo e sobretudo a rapidez com que a instituição responsável
reagiu. Na tentativa de apagar o incêndio, jogaram mais lenha na fogueira.
Julgando eliminar a fonte de conflito, ela no fundo referendou o processo
repressivo, se alinhou a uma série de movimentos similares ocorridos no país e
no exterior (como exemplos podemos citar a tentativa de criminalização de
exposições como as de Robert Maplethorpe (EUA), a coletiva “Erótica"
(outro tema sensível para mentes conservadoras) ou as mostras de Nelson Leirner
e Nan Goldin (Brasil)).
Quanto mais fica evidente a necessidade de diálogo entre os
diferentes atores do campo artístico, mais longínquo ele parece estar. Foram
muitas as provas de uma incapacidade crescente de escuta entre os diversos
atores. Talvez o aspecto mais evidente deste fenômeno tenha sido a falta de
comunicação interna entre os diversos agentes, com farpas sendo lançadas de
todos os lados. O curador Gaudêncio Fidelis deixou absolutamente público seu
repúdio à atitude do Santander Cultural, disse que tinha sido informado do
fechamento da exposição pelo Facebook, enquanto o empresário Justo Werlang –
colecionador, membro da atual direção da Bienal de São Paulo e figura
proeminente do sistema de artes gaúcho – acusou-o de estar aproveitando o
escândalo para propagandear-se às custas da instituição. O conflito explicita
que o problema não está nem nas obras nem na reação do público, mas sim numa
profunda divergência entre os diversos atores sobre o tipo de sociedade que
queremos.
Em meio a este tiroteio de declarações, paira uma questão
essencial neste (não) debate: o modelo de financiamento do sistema de artes no
Brasil. É mais do que urgente rever este modelo, mas não se pode atribuir a ele
a responsabilidade plena por crises como a de “Queermuseu”, nem tampouco
resolve a saída proposta pelo Santander de devolver os mais de R$ 800 mil que
havia captado através do sistema de renúncia fiscal. Afinal, num sistema em que
o critério de seleção é mercadológico e marcado pelo compadrio, o mecenato fica
– como estamos vendo – sujeito à pressão de grupos, extremistas ou não, que
mobilizam arbitrariamente a opinião pública.
Uma reflexão acerca de um problema candente como o da
"diferença na arte brasileira", com ênfase sobre a questão de gênero,
mas não de forma exclusiva, acabou sendo tratada de fora leviana. Em exposições
de tamanho alcance, a crítica é mais do que bem-vinda. E foram raríssimas as
exceções que seguiram este caminho, como a reflexão de Francisco Hurtz acerca
da arte queer e dos equívocos da mostra que empresta este nome. Que falta faz
uma resenha da exposição, uma análise das intenções e alcances do projeto por
parte dos poucos que tiveram a oportunidade de visitá-la antes que suas portas
fossem fechadas. Aparentemente, em todo esse debate, o caráter propriamente
reflexivo e poético da exposição não foi levado em conta e nem tampouco a
contribuição das obras selecionadas para alimentar a reflexão conjunta.
Texto e imagem reproduzidos do site: paginab.com.br
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