segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Caso Queermuseu - 'Quanto mais falarmos, melhor'


Publicado originalmente no site Página B em, 15/09/2017.

'Quanto mais falarmos, melhor'

O caso Santander acende sinal de alerta e nos traz um questionamento: qual tipo de sociedade queremos?

Por Maria Hirszman. 

Passados alguns dias do encerramento precipitado da exposição "Queermuseu: Cartografias da diferença na arte brasileira”, em Porto Alegre, torna-se necessário tirar algumas conclusões sobre esse traumático processo e aproveitar esse raro momento de indignação no meio cultural para iluminar problemas e fomentar o debate numa sociedade tão avessa ao diálogo como o Brasil atual. Dentre os diversos sintomas de mal-estar revelados por essa crise estão o divórcio entre público e o meio artístico, a falta de transparência na gestão cultural e a transformação de questões densas como a investigação poética acerca do universo queer em um mero efeito propagandístico.

Como já foi noticiado à exaustão, a mostra – que deveria ficar em cartaz até o próximo dia 8 de outubro – foi encerrada às pressas pelo Santander Cultural depois de uma forte e intempestiva pressão por parte de movimentos conservadores, liderados pelo MBL. Assédio contra funcionários e visitantes, pressão via mídias sociais e internet, ameaça de boicote ao banco e inclusive pichações em agência bancária nas proximidades do espaço cultural foram as armas usadas para conseguir rapidamente e sem contra-argumentação o encerramento imediato da exposição, acusada de promover a zoofilia, pedofilia e blasfêmia.

A análise fria das quase 270 obras, de mais de 80 autores diferentes, evidencia o exagero nas acusações. Uma dupla de promotores chegou a visitar a mostra em busca de indícios criminais e constatou apenas a presença de algumas poucas obras de cunho sexual e nenhuma contravenção legal. Da mesma maneira, dezenas de textos publicados por especialistas, na mídia ou veiculados nas redes sociais, mostram a falta de fundamento da ideia de "Queermuseu” como uma manifestação desrespeitosa. As obras em questão inserem-se na larga tradição de representação mais explícita da atividade sexual – presente desde sempre em diversas culturas. Os comentários – afora alguns conselhos cautelosos de uso de sinalização de faixa etária e eventual separação de obras mais polêmicas em recinto à parte – são unânimes em alertar para os riscos crescentes de uma política repressiva em relação às artes e a à cultura em geral.

Não chega a ser surpresa que um público mal informado – e mal formado – reaja intempestivamente contra aquilo que desconhece e que estranha. A leitura de imagens não pode ser feita de forma rasa ou literal e exige treino para perceber sutilezas ao invés de obviedades. Assim como não se pode considerar piromaníaco o artista que pinta um incêndio ou um defensor da prostituição quem retrata cenas de mulheres nos cabarés.

É indiscutível, por exemplo, que o incômodo causado pelas obras deriva de uma leitura superficial, preconceituosa e autoritária das imagens. Trabalhos como “Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, de Fernando Basil, é na verdade uma fusão irônica entre as culturas católica e hindu, permeada por símbolos da cultura de massas – como que a reforçar o caráter idólatra, tanto do mercado como das religiões – ou até mesmo "Et Verbum”, de Antonio Obá (a mais agressiva das obras ao associar palavras como vulva e língua à hóstia) não podem ser considerados ofensivos num país que se diz laico.

"Travesti da Lambada e deusa das águas”, de Bia Leite, vista como uma apologia à pedofília, nada mais é do que uma forma de denunciar o sofrimento de crianças que não se encaixam no padrão dominante de sexualidade. E as cenas de sexo retratadas por Adriana Varejão em "cenas do Interior II” estão muito longe de ser uma "defesa” da zoofilia, como dizem seus detratores. Na verdade, ao parodiar, recontextualizar criticamente, referências diversas de um vasto repertório visual, que inclui desde a arte chinesa até elementos tirados da iconografia do período colonial, ela revela o que há de oculto e perverso nos sistemas de dominação de cor, raça ou gênero. Talvez seja exatamente aí, na denúncia de um sistema de opressão que se quer perpetuar, que resida o profundo incômodo que seu trabalho acabara por gerar. Por isso, como diz a própria artista, quanto mais falarmos sobre isso, melhor”.

No entanto, o mais espantoso nesta história é a virulência do movimento repressivo e sobretudo a rapidez com que a instituição responsável reagiu. Na tentativa de apagar o incêndio, jogaram mais lenha na fogueira. Julgando eliminar a fonte de conflito, ela no fundo referendou o processo repressivo, se alinhou a uma série de movimentos similares ocorridos no país e no exterior (como exemplos podemos citar a tentativa de criminalização de exposições como as de Robert Maplethorpe (EUA), a coletiva “Erótica" (outro tema sensível para mentes conservadoras) ou as mostras de Nelson Leirner e Nan Goldin (Brasil)).

Quanto mais fica evidente a necessidade de diálogo entre os diferentes atores do campo artístico, mais longínquo ele parece estar. Foram muitas as provas de uma incapacidade crescente de escuta entre os diversos atores. Talvez o aspecto mais evidente deste fenômeno tenha sido a falta de comunicação interna entre os diversos agentes, com farpas sendo lançadas de todos os lados. O curador Gaudêncio Fidelis deixou absolutamente público seu repúdio à atitude do Santander Cultural, disse que tinha sido informado do fechamento da exposição pelo Facebook, enquanto o empresário Justo Werlang – colecionador, membro da atual direção da Bienal de São Paulo e figura proeminente do sistema de artes gaúcho – acusou-o de estar aproveitando o escândalo para propagandear-se às custas da instituição. O conflito explicita que o problema não está nem nas obras nem na reação do público, mas sim numa profunda divergência entre os diversos atores sobre o tipo de sociedade que queremos.

Em meio a este tiroteio de declarações, paira uma questão essencial neste (não) debate: o modelo de financiamento do sistema de artes no Brasil. É mais do que urgente rever este modelo, mas não se pode atribuir a ele a responsabilidade plena por crises como a de “Queermuseu”, nem tampouco resolve a saída proposta pelo Santander de devolver os mais de R$ 800 mil que havia captado através do sistema de renúncia fiscal. Afinal, num sistema em que o critério de seleção é mercadológico e marcado pelo compadrio, o mecenato fica – como estamos vendo – sujeito à pressão de grupos, extremistas ou não, que mobilizam arbitrariamente a opinião pública.

Uma reflexão acerca de um problema candente como o da "diferença na arte brasileira", com ênfase sobre a questão de gênero, mas não de forma exclusiva, acabou sendo tratada de fora leviana. Em exposições de tamanho alcance, a crítica é mais do que bem-vinda. E foram raríssimas as exceções que seguiram este caminho, como a reflexão de Francisco Hurtz acerca da arte queer e dos equívocos da mostra que empresta este nome. Que falta faz uma resenha da exposição, uma análise das intenções e alcances do projeto por parte dos poucos que tiveram a oportunidade de visitá-la antes que suas portas fossem fechadas. Aparentemente, em todo esse debate, o caráter propriamente reflexivo e poético da exposição não foi levado em conta e nem tampouco a contribuição das obras selecionadas para alimentar a reflexão conjunta.

Texto e imagem reproduzidos do site: paginab.com.br

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