Cena de interior II, da artista Adriana Varejão: obra estava exposta na mostra
'Queer Museum – Cartografia da Diferença na Arte' em Porto Alegre.
Imagem: Divulgação.
Publicado originalmente no site do El País, em 18 SET 2017
Gays e crianças como moeda eleitoral
As milícias em benefício próprio descobriram como barganhar
com a vida dos brasileiros e ganhar adeptos manipulando o medo e o ódio
Por Eliane Brum.
O fechamento da mostra Queer Museum – Cartografia da
Diferença na Arte Brasileira aponta a crescente articulação entre setores da
política tradicional e milícias como o Movimento Brasil Livre (MBL). Essa
articulação está desenhando o Brasil deste momento – e poderá ter muita
influência na eleição de 2018. Nesta coligação não formalizada, velhas táticas
ganham aparência de novidade pelo uso das redes sociais, com enorme eficiência
de comunicação. É velho e novo ao mesmo tempo. A vítima maior não é a arte ou a
liberdade de expressão, mas os mesmos de sempre: os mais frágeis, os primeiros
a morrer.
A exposição era exibida desde 15 de agosto, em Porto Alegre,
no Santander Cultural. Contava com obras de artistas brasileiros de diversas
gerações, como Cândido Portinari, Alfredo Volpi, Ligia Clark, Leonilson e
Adriana Varejão. É justamente de Varejão uma das obras mais atacadas: “Cenas do
interior 2” tem quatro imagens de atos sexuais, incluindo sexo com um animal.
Outra obra demonizada foi a de Bia Leite, que expôs desenhos baseados em frases
e imagens do Tumblr “Criança Viada”, que reúne fotos enviadas por internautas
deles mesmos na infância. Liderados por milícias como o MBL, pessoas começaram
a ofender o público da mostra e a acusar os artistas de promover a “pedofilia”,
a “zoofilia” e a “sensualização precoce de crianças”. As milícias também
promoveram um boicote ao banco. O Santander recuou, e a exposição, que deveria
se estender até outubro, foi encerrada.
O MBL, uma das milícias que lideraram os ataques à
exposição, foi um dos principais articuladores das manifestações contra o PT e
pelo impeachment de Dilma Rousseff, que levaram às ruas milhões de brasileiros
vestidos de amarelo. Na ocasião, sua bandeira era a luta contra a “corrupção”.
E propagavam ideias “liberais”. Como bem apontou Pablo Ortellado, em sua coluna
na Folha de S. Paulo, o MBL descobriu que “as chamadas ‘guerras culturais’ eram
um ótimo instrumento de mobilização e que por meio do discurso punitivista e
contrário aos movimentos feminista, negro e LGBTT podiam atrair conservadores
morais para a causa liberal”. Passaram então a gritar contra as cotas raciais,
o aumento do encarceramento (num país em que a maioria dos presos é composta
por negros) e um projeto que espertamente foi batizado de “Escola Sem Partido”.
Mas qual é o contexto e o que o MBL e outras milícias
semelhantes defendem? Se este tipo de grupo se formou erguendo a bandeira da
“anticorrupção” e não promove nenhuma manifestação nas ruas contra um presidente
denunciado duas vezes e um dos governos mais corruptos da história do Brasil, é
possível levantar a hipótese bastante óbvia de que a “corrupção” nunca foi o
alvo.
Quando são citados na imprensa, MBL e assemelhados são
tachados de “conservadores” e “liberais”. Isso os coloca sempre num polo contra
outro polo, o que é essencial para este tipo de milícia sobreviver, se replicar
e agir em rede. E dá a estas milícias uma consistência que não condiz com a
realidade de seu conteúdo. Liberais de fato jamais tentariam fechar uma mostra
de arte, para ficar apenas num exemplo. Nem faz sentido dizer que são
“conservadores” ou mesmo de “direita”. Eles são o que lhes for conveniente ser.
A dificuldade de nomear o que são, é importante perceber, os
favorece. E acabam se beneficiando de rótulos aos quais lhes interessa estar
associados num momento ou outro e que lhes emprestam um conteúdo que não
possuem, mas do qual sempre podem escapar quando lhes convêm. Neste sentido,
apesar de exibirem como imagem um corpo compacto, essas milícias são fluidas.
Embora ajam sobre os corpos, não há corpo algum. Isso lhes facilita se moverem,
por exemplo, da luta anticorrupção para as bandeiras morais, agora que não lhes
interessa mais derrubar o presidente.
A força de milícias como MBL é sua capacidade de influenciar
tanto eleitores quando odiadores, num momento histórico em que estas duas
identidades se confundem
O que se pode afirmar sobre milícias como o MBL é que elas
têm um projeto de poder – ou têm um poder que pode servir a determinados
projetos de poder. O poder destas milícias está em mostrar que são capazes de
se comunicar com as massas e, portanto, de influenciar tanto eleitores quando odiadores,
num momento histórico em que estas duas identidades se confundem. E este é um
enorme poder, que claramente tem sido colocado a serviço de políticos e de
partidos tradicionais. Além e principalmente, claro, de a serviço de seu
próprio benefício.
A descoberta de que temas “morais” são uma excelente moeda
de barganha não é prerrogativa do MBL e de seus assemelhados. Esta moeda sempre
esteve em circulação. Na Nova República, que se seguiu à ditadura civil-militar
(1964-1985), ela esteve na primeira eleição presidencial da redemocratização,
quando Fernando Collor de Mello, que depois se tornaria o primeiro presidente a
sofrer impeachment, usou fartamente contra Lula o fato de que ele tinha uma
filha de uma relação anterior ao seu casamento com Marisa Letícia e que teria
sugerido um aborto à então namorada.
Mas o marco fundador do que vivemos hoje pode ser localizado
bem mais tarde, na eleição de 2010. Naquele momento, ao perceber o potencial
eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, em especial dos
neopentecostais, alguns oportunistas perceberam que jogar o tema do aborto no
palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto
para derrubar opositores.
No final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas
foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma Rousseff
era “abortista” e “assassina de fetos”. Rousseff começou a perder votos entre
os evangélicos e parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não
votar nela. José Serra (PSDB) empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das
catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Rousseff correu a
buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se
“pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a
eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema.
Quem peregrinou por templos evangélicos defendendo Rousseff
e garantindo que ela era contra o aborto foi justamente Eduardo Cunha (PMDB),
que depois lideraria o processo de impeachment da presidente eleita e hoje está
preso. Naquele momento, o debate político, que nas eleições anteriores tinha se
mantido dentro de certos parâmetros éticos, foi rebaixado. E os oportunistas
religiosos e não religiosos farejaram que estes eram o temas com que poderiam
garantir vantagens para si mesmos e para seus grupos, traficando-os no balcão
de negócios de Brasília. Quando os limites são superados, mesmo aqueles que
promoveram a sua superação não são capazes de prever até onde isso pode chegar.
Desde então, o corpo de mulheres e de gays, lésbicas, travestis e transexuais
tornou-se uma das principais moedas de barganha eleitoral.
As milícias rapidamente compreenderam esse potencial. Seu
trunfo é comprovar que podem levar as massas para onde quiserem, o que as torna
valiosas para políticos com grandes ambições eleitorais e valiosas para seus
líderes com ambições eleitorais. Mas só podem levá-las porque se comunicam com
uma população que se sente cada vez mais insegura e desamparada e que é a
primeira a sofrer com a crise econômica e a crescente dureza dos dias sem
saúde, sem escola, sem serviços básicos, enquanto assiste a um noticiário que é
quase todo ele sobre malas de dinheiro da corrupção. Uma população que há anos
tem sido treinada por programas policialescos/sensacionalistas na TV que
atribuem todas as dificuldades a facínoras à solta, adestrando-a a ver as
mazelas da vida cotidiana como culpa de alguém que pode e deve ser eliminado –
e não a uma estrutura mais complexa que a mantém cimentada no lugar dos
explorados.
As milícias encontraram o canal de comunicação com o medo e
com o ódio de uma população acuada e, assim, o inimigo pode ser mudado conforme
a conveniência
As milícias compreendem o potencial desse medo e desse ódio.
E sabem se comunicar com esse medo e esse ódio. Encontraram o canal, o ponto a
ser tocado. Encontrado o canal, o inimigo pode ser mudado conforme a
conveniência. Se agora não interessa derrubar o presidente denunciado por
corrupção, há que se encontrar um outro alvo para canalizar esse ódio e esse
medo e manter o número de seguidores cativos e, de preferência, crescendo,
atingindo públicos mais amplos. E, principalmente, manter o valor de mercado
das milícias em alta, em especial às vésperas de uma campanha eleitoral das
mais imprevisíveis.
Assim, testemunhamos um fenômeno de ilusão na semana
passada. O problema do Brasil já não era a desigualdade nem a pobreza que
voltou a crescer. Nem mesmo o desemprego. Nem a crescente violência no campo e
nas periferias promovidas em grande parte pelas próprias forças de segurança do
Estado a serviço de grupos no poder. Nem o desinvestimento na saúde e na
educação. Nem a destruição da floresta amazônica e o ataque aos povos indígenas
e quilombolas pelos chamados “ruralistas”. Nem projetos que mexem em direitos
conquistados na área trabalhista e da previdência sendo levados adiante sem
debate por um governo corrupto. Não.
De repente, na semana passada, o problema do Brasil
tornou-se, para milhões de brasileiros, a certeza de que o país é dominado por
pedófilos e defensores do sexo com animais. Agora, são artistas que devem ser
perseguidos, presos e até, como se viu em algumas manifestações nas redes
sociais, mortos. E não só artistas, mas também quadros e peças de teatro. O
problema do Brasil é que pedófilos querem corromper as crianças e transgêneros
querem destruir as famílias.
Assim como pouco antes o problema do Brasil era o fato de os
negros, maioria da população, passarem a ter o acesso à universidade ampliado
por ações afirmativas. E o problema do Brasil seria uma suposta doutrinação
partidária nas escolas – e não a falta de investimento em educação e o salário
de fome dos professores e as escolas caindo aos pedaços. Com esse truque de
ilusionismo coletivo se desvia da necessidade de mudar algo muito mais
estrutural em um dos países mais desiguais do mundo.
O prejuízo causado pelo ataque à exposição é menos a questão
da liberdade de expressão e mais o apagamento dos massacres reais
O prejuízo causado pelo ataque à exposição de arte é menos a
questão da censura e do cerceamento da liberdade de expressão, como foi
colocado por parte dos que reagiram contra o fechamento da mostra, e mais o
apagamento que ataques como este ajudam a produzir e a perpetuar. Como o número
assombroso de homossexuais assassinados e de estupros de mulheres no país. Para
lembrar: segundo o Grupo Gay da Bahia, que documenta a violência produzida por
homofobia, só neste ano 251 pessoas foram assassinadas por sua orientação
sexual. No ano passado, ocorreram 343 assassinatos. Os crimes por homofobia vêm
crescendo: entre 2005 e 2014 foram 2181 homicídios e, apenas entre 2015 e 2017,
já são 3093. Em 2014, metade dos casos registrados de transfobia letal no mundo
ocorreu no Brasil. Este massacre, este que é real, este que se dá sobre os
corpos de pessoas, este não produz nenhum protesto ou comoção.
A cada hora, no Brasil, cinco mulheres são estupradas. Isso
significa que, enquanto você lê este texto, pelo menos uma mulher já sofreu ou
está sofrendo um estupro. E isso são apenas os casos documentados. A
estimativa, segundo estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada),
é de que apenas 10% dos estupros são registrados pela polícia. Assim, o número
verdadeiro seria de mais de meio milhão de estupros por ano no Brasil. Este
massacre, este que é real, este que se dá sobre os corpos de pessoas, este não
produz comoção no país.
Ao denunciar a arte e os artistas como “pedófilos”, o que se
produz é o apagamento de um fato bastante incômodo: o de que a maioria das
crianças violadas é violada por familiares e conhecidos
Ao denunciar a arte e os artistas como “pedófilos”, o que se
produz é o apagamento de um fato bastante incômodo: o de que a maioria das
crianças violadas é violada por familiares e conhecidos. Pelo menos um quarto
dos casos de violação de crianças tem como autor pais e padrastos. Ocorre,
portanto, naquilo que a bancada da Bíblia tenta vender como a única família
possível, formada por um homem e por uma mulher.
Essa mesma estratégia faz com que a guerra contra as cotas
raciais torne ainda mais invisível o horror concreto: o genocídio da juventude
negra e pobre. E o “Escola Sem Partido” desloca o problema real, o
desinvestimento na escola pública, justamente a que abriga os mais pobres, para
um falso problema, a suposta doutrinação política. E assim, com os males reais
sendo invisibilizados e apagados, tudo continua como está. E aqueles que gritam
seguem cimentados na mesma posição na pirâmide social.
Para que as milícias sigam arregimentando odiadores é
preciso que a compreensão do mundo seja cada vez mais literalizada, por isso é
tão importante atingir a cultura, aquela que amplia as subjetividades
O fato de que as mais recentes ofensivas sejam contra a cultura
não é um dado qualquer. É também por movimentos culturais surgidos nas
periferias do país e apoiados por programas públicos, especialmente nas gestões
de Gilberto Gil e de Juca Ferreira, que uma juventude politizada fortaleceu sua
atuação. É também nas artes e na literatura que se encontra a maior
possibilidade de ampliação das subjetividades. E é a subjetividade que nos
ajuda a compreender o mundo em que vivemos para além do que nos é dado para
ver.
E isso também não é um detalhe: para as milícias seguirem
arregimentando eleitores e odiadores é preciso que a compreensão do mundo siga
literalizada – ou seja, sem a possibilidade de recursos como metáforas, ironias
e invenções de linguagem. Nesse ritmo, daqui a pouco, quando alguém disser
coisas como “boca da noite”, um outro vai rebater com a afirmação de que “noite
não tem boca”. É também isso que aconteceu quando muitos olharam para a
exposição e só literalizaram o que viram lá, bloqueados em qualquer outra
possibilidade de entrar em contato com seus próprios sentidos e realidades
inconscientes.
Se os programas policialescos/sensacionalistas colaboraram
para a compreensão unidimensional do Brasil, as novas igrejas evangélicas
cumpriram o papel de literalizar a linguagem de parte dos brasileiros
Se os programas policialescos/sensacionalistas de TV
desempenharam e desempenham um papel fundamental para a compreensão simplista
do Brasil e dos problemas do Brasil, ao eleger um “culpado” individualizado,
sem tocar em questões de desigualdade racial e social e questões de acesso a
direitos básicos como a própria justiça, as igrejas evangélicas neopentecostais
cumpriram e cumprem o papel de literalizar a linguagem. Há gerações sendo
formadas na interpretação literal da Bíblia, para muitos o único livro que leem.
O que milícias como MBL perceberam é a possibilidade de manipular essa mesma
matéria-prima, arregimentando massas já bem treinadas em enxergar inimigos e
literalizar a linguagem.
Há um ponto nesse episódio que é revelador de onde milícias
como MBL querem chegar. É o ponto de encaixe. As milícias sempre vociferaram
contra os “vândalos” e “desordeiros” que quebravam fachadas de bancos em
protestos contrários à sua bandeira de ocasião. Desta vez, aparentemente
investiram contra o Santander, um dos maiores bancos do mundo, ao pregar um
boicote. Mas não era contra o Santander, e sim contra o fato de uma exposição
que afirmaram ser de “apologia à pedofilia e à zoofilia” ter sido financiada
por dinheiro de renúncia fiscal via lei Rouanet. O verdadeiro alvo do ataque é
o investimento de dinheiro público em cultura. Se a lei Rouanet tem problemas e
pode ser aprimorada, ela significou um investimento importante numa área sempre
relegada e que tem sofrido enormemente no atual governo.
Neste ponto, vale a pena perceber quais são os candidatos
que apoiam e são apoiados por milícias como o MBL. Em São Paulo, João Doria Jr
(PSDB), o político cuja política é se dizer não político. Volta e meia são
postadas nos sites das milícias as fotos de Doria serelepando pelo Brasil em
seu jatinho particular. Nestes posts, é enaltecido o fato de que ele não gasta
dinheiro público para se locomover “a serviço de São Paulo”.
Os milhares que apertam a tecla de “curtir” esse tipo de
mensagem podem não perceber que se propagam ali duas ideias que prejudicam a
maioria da população: 1) que só ricos podem ser eleitos; 2) que o investimento
de dinheiro público é ruim para o Brasil, quando justamente é fundamental para
combater a desigualdade e garantir o acesso a direitos básicos que se invista
em saúde, educação e transporte público, entre outros temas prioritários. A
ideia de que todo investimento público é suspeito ou será desviado para a
corrupção é bastante conveniente para políticos e candidatos da política
tradicional a serviço do mercado. Quanto menos o Estado atuar e investir em
áreas estratégicas para a vida cotidiana e a qualificação da população, há mais
espaço para negócios que só crescem pela sua ausência.
Outro exemplo é o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan
Jr, também do PSDB, notório apoiador e apoiado pelo MBL. A nota do Santander
Brasil foi publicada na página oficial do prefeito, com a afirmação de que “a
exposição mostrava imagens de pedofilia e zoofilia”. Horas depois, foi apagada.
A milícia desempenhou um papel importante em sua vitória na última eleição. E é
para a eleição de 2018 que o MBL vem ensaiando lances cada vez mais ousados,
como o da exposição, que pode ter levado alguns de seus apoiadores e apoiados a
um afastamento temporário. Mas o que importa é e sempre será o poder das
milícias de influenciar eleitores/odiadores.
Um grita: “Pedófilo!”. O outro responde: “Nazista!”. O que
muda?
De nada adianta chamar as pessoas que se manifestaram contra
a mostra de “ignorantes”, “fascistas” e “nazistas”. É também preciso escutá-los
para além do óbvio. E para além do que é dado a ver. Do contrário, aqueles que
“entendem a arte” se colocam no melhor lugar para as milícias, o de um polo
oposto que iguala a todos no patamar do rebaixamento e produz o apagamento das
diferenças. Um grita: “Pedófilo!”. O outro responde: “Nazista!”. O que muda? Se
estes são “os que entendem”, há que usar esse entendimento para não fazer o
jogo das milícias.
Também não adianta gritar que as pessoas não compreendem o
que é arte. Se parte significativa da população não teve e não tem acesso à
arte é também porque os privilégios se mantêm intactos neste país graças a
muita gente que entende de arte. E nada, muito menos a arte, deve estar
protegida do debate. O ataque é abusivo. O debate é necessário.
Há diferenças entre as milícias que lideram os ataques e
aqueles que elas conseguem arregimentar para os ataques: é essencial compreender
essas diferenças e aprender a dialogar com elas
Há diferenças entre as milícias que lideram os ataques e
aqueles que elas conseguem arregimentar para os ataques. É importante
compreender essas diferenças e aprender a dialogar com elas. Durante a semana
passada, por exemplo, evangélicos replicaram mensagens enviadas por seus
pastores contra a mostra e a “apologia à pedofilia”. Mas algumas destas
pessoas, com quem conversei, estavam replicando a mensagem ao mesmo tempo que
participavam ativamente de debates públicos sobre direitos humanos e maior
investimento no SUS. Estas, por exemplo, são pessoas com quem é possível
conversar. E este é apenas um exemplo. É um erro confundir os líderes das
milícias com aqueles que ocasionalmente lideram. Assim como é um erro colocar o
complexo mundo evangélico brasileiro no mesmo escaninho.
A crise, como não custa repetir, é também de palavra. Ou
principalmente de palavra. E o esvaziamento das palavras é algo poderoso. Como
o “livre” do Movimento Brasil Livre (MBL). Ou como “Escola Sem Partido”, um
projeto que toma vários partidos. Mas as palavras que os confrontam já se
esvaziaram. Como “fascista”, que já pouco ou nada diz. E agora também “nazista”
já se desidrata. Para uma parte significativa da população, os conceitos de
“direita” e “esquerda” pouco significam. E “pedófilo” agora pode ser alguém que
pintou um quadro. Assim como as gentes na internet vão virando fantasmagorias,
as palavras também.
A literalização da linguagem é apenas uma das faces da crise
da palavra. Os brasileiros sempre tiveram uma linguagem riquíssima, complexa,
de invenção, povoada por subjetividades. Guimarães Rosa, um dos maiores ícones
da literatura brasileira, bebeu nesta fonte – e não o contrário. Alguns dos
melhores momentos da música brasileira foram paridos por essa inventividade
ousada. É o teatro quem tem melhor dado conta do atual momento do Brasil.
É nesta resistência que é preciso apostar. E para isso é
preciso investir muito no fortalecimento dos movimentos culturais. E é preciso
fazer a disputa também ou principalmente pela linguagem. Quando tantos gritam
“pedófilo” é preciso escutar e responder de forma que o diálogo seja possível.
Quem ganha com o esvaziamento das palavras já sabemos. Quem perde nem sempre
percebe que perde.
Aqueles que investem no terror sabem apenas como começa. Mas
como ignoram a história e apostam na desmemória, não aprenderam uma lição
básica: quando se manipula medos e ódios, o controle é apenas uma ilusão. Nunca
se sabe até onde pode chegar nem como acaba.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora
dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém
vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site:
desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:
@brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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