Mário Sérgio Cortella.
Foto: Gigi Kassis.
'Só um imbecil gostaria de fazer o que não curte'
O filósofo Mario Sergio Cortella é conhecido por sua
experiência na área de educação, mas parece capaz de filosofar sobre tudo.
Nesta entrevista de menos de uma hora, ele foi da sala de aula à Copa, passando
por tecnologia, democracia e mundo corporativo.
Cortella é professor há 40 anos e, na juventude, tentou por
três a vida no Monastério. Foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo,
trabalhou ao lado de Paulo Freire, uma das figuras mais importantes da educação
brasileira, e escreveu mais de 15 livros. Uma de suas aulas colocadas no
YouTube - "Você sabe com quem está falando?" - tem quase 800 mil
visualizações.
Na conversa a seguir, ele chama a atenção para um
"desvio de formação" dos jovens, que não foram ensinados a batalhar
pelo que desejam. Ao mesmo tempo, afirma que essa geração tem várias
características que precisam ser valorizadas. Cortella também dá um alerta
sobre a nossa falta de tempo para pensar sobre nós mesmos: "algumas coisas
na vida é melhor começar cedo antes que seja tarde". A dica, que ele
repetiu algumas vezes durante a entrevista, é "parar, olhar e
escutar". Já fez o seu minuto de silêncio hoje?
Debate-se muito no mercado de trabalho sobre essa geração
que está encarando agora seus primeiros empregos, que suas expectativas não
condizem com o que o mundo corporativo tem a oferecer hoje, e que eles não se
encontram.
Há duas coisas aí. Primeiro: de qual jovem estamos falando?
Porque aquele que não se encontra é aquele que tem escolha. Quem não tem
escolha tem que se encontrar, senão não sobrevive. A mesma coisa vale para o
dilema de mulheres que não sabem se trabalham ou cuidam dos filhos. Essa é uma opção
que só parte da população tem. Boa parte das mulheres ou trabalha ou morre, só
isso. De maneira geral, aquela que tem o dilema é aquela que contrata outra
mulher para cuidar de seus filhos, para que possa trabalhar enquanto pensa se
trabalha ou cuida dos filhos.
Mas para quem tem escolha, nas grandes organizações hoje há
uma dificuldade de lidar com essa geração. Porque esse jovem com menos de 30
anos tem grandes belezas e capacidades, como senso de urgência, mobilidade,
instantaneidade, simultaneidade, velocidade. Mas ele não tem algumas coisas que
é necessário trabalhar: paciência, noção de hierarquia e compromisso com
resultado e meta. Por uma razão: essa classe média jovem tem um desvio de
formação que é confundir desejos com direitos. Isto é, eu quero, portanto você
tem que me dar.
É um problema de criação?
Claro, é um problema de formação dentro da família. Desse
ponto de vista, uma parcela deles acha que, dentro de uma empresa, se eu sou o
chefe é como se eu fosse pai ou mãe, ou seja, eu tenho que prover as condições,
e isso não acontece. Portanto, retirou-se da formação de uma parcela dessa
geração a ideia de esforço. Ao fazê-lo, criou-se uma condição muito malévola,
que é supor que as coisas tem que ser marcadas pela ideia de prazer. E por isso
há um hedonismo hoje muito forte.
Um jovem diz: eu quero fazer o que eu gosto. Eu também. Só
um imbecil gostaria de fazer o que não gosta. Todo mundo gosta de fazer o que
gosta. No entanto, para fazer o que gosta é preciso que dê passos não tão
agradáveis no cotidiano. Eu gosto demais de dar aula, faço isso há 40 anos, mas
não gosto de corrigir prova, não conheço ninguém que goste. Mas eu não posso
não corrigir, porque se eu não corrijo não tenho visão do como os alunos estão
aprendendo e de como eu estou ensinando. Pois bem, qualquer um sabe que para
obter prazer em algo é preciso algumas coisas que não são, no caminho,
satisfatórias e prazerosas. Só que essa geração atual foi criada sem esse tipo
de transição entre o desejo e o fato, entre a vontade e o sucesso, o anseio e a
satisfação. Tem menino de 20 anos de idade que nunca arrumou cama, lavou louça.
O que a empresa pode fazer?
Elas precisam lidar com esse percurso de modo a formar as
pessoas dessa geração com compromisso, metas e prazos, mas sem perder o que ela
tem de mais inovador. Isto é, não só a familiaridade com o digital, mas o senso
de urgência, mobilidade, inovação. Isso é uma força vital, altamente
contributiva no mundo das empresas. Não posso em um negócio não ter gente que
queira viver algo que é novo. Mas também não posso aceitar que ele ache que a
vida só funcione com o novo. Você pode desprezar essa geração em nome daquilo
que nela é um desvio, o que seria uma tolice imensa, ou pode aproveitar o que
ela tem e procurar formá-la na direção daquilo que a fará crescer.
Há outra questão latente nas empresas: elas têm abusado da
tecnologia e, muitas aproveitam as novas ferramentas, para exigir que seus
funcionários fiquem disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana.
Como lidar com isso?
Como lidar com isso?
A tecnologia não pode ser nossa senhora, tem que ser nossa
serva. Sempre que algo que é do nosso uso nos possui, isto é, domina o nosso
cotidiano, esgota nosso tempo, devora nossa condição de convivência, existe
algum tipo de malefício. A recusa da tecnologia é tola, a adoração da
tecnologia também é. Quando a empresa exagera nesse polo obtém vantagem por
tempo limitado. Ela esgota de tal maneira seus empregados que depois de um
tempo eles não conseguem mais lidar com isso. As pessoas começam a não render
mais, se desinteressam, vão embora.
E na vida pessoal, as pessoas percebem o quanto a tecnologia
as consome?
Elas começam a perceber aos poucos porque começam a
argumentar que estão sem tempo. Esse estar sem tempo é muito sério. Significa
“não consigo mais ficar comigo, tenho que viver em voz alta”. Uma das coisas
que colaboram para isso é a ausência de energia. De vez em quando acaba a
eletricidade e as pessoas tem que olhar-se. Ou quando a pessoa está fazendo uma
viagem de avião, ela tem que ficar quieta. São coisas que vão induzindo um
pouco do silêncio.
Até na área de educação escolar estamos tendo que reordenar
o modo como a gente acolhe as crianças de manhã. Vêm com transporte até a
escola ouvindo musica alta no fone, chegam em estado de tensão. É preciso
acalmá-las, não basta colocar numa sala, mandar sentar e abrir o livro na
página 36. É preciso antes diminuir a luminosidade da sala, colocar uma música
mais relaxante e sossegar um pouco. Porque se não acalmar há um desespero
contínuo.
Como a gente coloca um pouquinho mais desse silêncio, desse
tempo, em nosso dia?
Se for em relação às empresas, algumas estão criando esse tempo.
Colocam na jornada de trabalho momentos de reflexão, meditação ou espaço de
repouso após almoço. O que leva o funcionário a ter um rendimento e um
bem-estar maior.
Quanto ao indivíduo, ou ele cria esses tempos – pare, olhe e
escute - ou vai viver de maneira automática, robótica, e conseguirá em breve um
estresse. O que pode gerar a adesão ao consumo exagerado de medicamentos e
drogas, legais ou ilegais. Uma obsessão por tentar ficar em estado de não
sobriedade. Tem uma musica antiga que diz: “não posso parar, se eu paro eu
penso, se eu penso eu choro”. Portanto, é necessário que as pessoas criem seus
tempos de recolhimento. Não de meditação e sofrimento. Mas para pensar: por que
faço o que faço? Por que deixo de fazer? Por que faço do jeito que faço? Por
que não faço como deveria? Isso é meditação. É reflexão. Senão uma hora a
pressão é insuportável. Algumas coisas na vida é melhor começar cedo antes que
seja tarde.
E essa questão da família, da criação? Estamos no caminho
certo?
Não, de maneira alguma. Vou lembrar algo óbvio: trabalho de
parto não termina na maternidade. Chama trabalho porque ter alguém exige
responsabilidade. Algumas pessoas escapam hoje dessa responsabilidade e querem
terceirizar isso. Assim como existe personal trainer, personal stylist, agora
tem personal father, personal mother. Por exemplo, você vai com uma criança ao
resort e, ao invés de ficar com seu filho, entrega para a recreação. Ou vai a
um buffet infantil, que é um sinal nosso de demência, e lá tem um recreador.
Desde quando criança precisa de adulto para fazê-la brincar? Estamos criando
gerações que nem brincar mais por si conseguem. Precisa um adulto vestido de
Bozo andando pra lá e pra cá animando as crianças. Como?! Criança se anima sem
adulto. A família tem que repensar isso também.
Isso não quer dizer que não seja possível equilibrar família
e trabalho...
Lógico que consegue. É uma questão de escolha. Tempo é uma
questão de prioridade. Quando você diz que não tem tempo pra algo é porque
aquilo não é prioridade pra você. Meu dia tem 24 horas eu vou preenchê-lo do
modo que eu quiser. Em relação ao filho é tranquilo. Se você não tem tempo para
os filhos, espere ele cair no mundo das drogas. Ai não é uma hora por dia. Um
ano, dois anos, se der tempo. Portanto, pare, olhe e escute.
Como é que você vê, com a morte do Eduardo Campos, essa
mudança radical nas eleições? Qual é o efeito disso na cabeça do eleitor?
Dependerá muito de como o grupo que sucede essa candidatura
vai se organizar. Eles não são um grupo homogêneo, seja do ponto de vista de
intenção, seja do ponto de vista de organização. Já tiveram mudança do comando
de campanha. Me alegra que foi escolhida para a coordenação da campanha a Luiza
Erundina, que é uma pessoa que eu admiro, fui secretário de educação no governo
dela. Mas a morte de Eduardo Campos coloca um componente emocional na eleição,
que é muito forte no Brasil. Temos três grandes fontes que nos impulsionam
durante as eleições: a credibilidade, o ridículo e a comoção. E há uma comoção
em relação à perda do candidato. Isso pode impulsionar, mas no quadro geral
dependerá de como esse partido, no caso o PSB, com suas alianças, consegue
ganhar maior unidade. Inclusive porque nos próximos 15 dias muda tudo, assim
como nos últimos 15 mudou. [A entrevista foi feita no dia 22 de agosto de 2014]
Estamos vindo de um ano que foi marcado por uma Copa em que
o país não pareceu muito animado...
Veja, nós somos um país que viveu uma situação
esquizofrênica muito interessante antropologicamente. Fomos para esta Copa com
uma certeza dupla: nosso time vai muito bem a organização vai muito mal.
Aconteceu exatamente o inverso: nós conseguimos uma estrutura de organização
absolutamente funcional, no padrão do que foi feito em países muito mais
estruturados que o nosso, e uma seleção pior do que boa parte das seleções que
disputaram a Copa.
Em 40 dias nosso sentimento mudou. Ele era um sentimento que
seria de protesto a um governo que não conseguiria organizar uma Copa, ao lado
de uma animação imensa com uma seleção rumo ao hexa. Mas depois do 7x1, nós não
falamos mais de futebol. Não é uma questão pra nós. A nossa questão agora é a
nação. A eleição, o que se faz no país. Isso foi um grande ganho. Ter sido
humilhado no Mineirão produziu em nós um efeito que esquecemos o futebol e
fingimos que aquilo não existiu. Estamos preocupados agora com aquilo que era a
motivação original dos movimentos em junho de 2013.
Portanto, 2014 é um ano que traz grandes expectativas em
relação ao debate no campo da política, de gestão nacional, discussão que foi
adensada pela morte de Eduardo Campos.
E essa onda de movimentos?
Infelizmente, eles foram assassinados por uma parte dos democracidas
que esquecem que democracia não é ausência de ordem, democracia é ausência de
opressão. Quando os democracidas entraram com a brutalidade, a estupidez,
afastaram as pessoas e produziram um dano muito forte a nossa democracia.
Eles criaram em parte das pessoas rejeição ao movimento de
rua. Ficou uma imagem que, depois de um tempo, muita gente estava achando que
era melhor que o aparelho policial, que tem a tarefa em uma democracia de
garantir a expressão, fosse repressor. Em vez de ser uma estrutura policial
garantidora - não podemos esquecer que palavra polícia e política são a mesma
em termos de estrutura, polis é a comunidade e polícia é o que faz com que a
comunidade viva em paz – ela passou a ser demandada por uma boa parte da
sociedade para ser um órgão repressor.
Acho que gerou pânico em relação à manifestação de rua, o
que é muito ruim. O país viveu em 2013 dois momentos inesquecíveis, algo que
historicamente era novo. As pessoas indo para as ruas com os filhos, caminhando
nas avenidas, pedindo melhorias. Isso tem uma beleza cívica. A praça, a rua, de
novo como uma coisa do povo.
E o segundo momento?
A outra coisa bela foi a visita do Papa Francisco. É
inacreditável que um homem que representa uma das religiões seja capaz de
durante uma semana pautar o país. Não se falou de outra coisa. Um homem de mais
de 70 anos de idade, representante de uma religião, sendo que religião pra uma
parte dos jovens representa aquilo que é anacrônico, colocou em Copacabana mais
gente do que os Rolling Stones. E ele trouxe algo incrível que é um debate
sobre humildade, sobre simplicidade, isso afetou as pessoas. Levou a repensar
nossa convivência com a política, nossa convivência com gestores, nossa atração
palacial, de achar que o palácio é a representação do poder. Portanto essa foi
uma contribuição muito mais forte até do que outro debate que nós tivemos.
O que esperar para o Brasil dos próximos quatro anos?
Bom, a primeira coisa é que a gente não deve esperar, a
gente deve fazer. Tem que ter esperança ativa. Aquela que é do verbo
esperançar, não do verbo esperar. O verbo esperar é aquele que aguarda enquanto
o verbo esperançar é aquele que busca, que procura, que vai atrás. Bem, o que
podemos esperançar? O que a gente puder construir dentro desse tempo agora. Nós
precisamos fazer com que, até o momento da eleição, haja uma discussão sobre a
necessidade de se pensar a educação, que é minha área, como um projeto de nação
e não de governo. É preciso que haja um compromisso, continuidade de um projeto
que é nacional. O governo passa, a nação persiste.
Por outro lado, dos três principais candidatos que estão
dentro do cenário hoje, os três tem algum compromisso sério com a área de
educação. O governo de Fernando Henrique junto com o governo Lula e Dilma
conseguiram tirar nossa educação escolar da indigência. Claro que estamos só,
como diria o Churchill, no fim do começo e não no começo do fim. Mas o partido
do Aécio tem uma formação nesse campo, o próprio PT tem tradição nessa área e,
claro, o próprio PSB. Temos boas expectativas nesse campo. Ademais, novo Plano
Nacional de Educação prevê aporte maior de recursos do PIB nessa área. Portanto
seja quem for eleito vai ter que fazê-lo. Por isso, minhas expectativas são
positivas. É preciso que se construa essa estrutura, mas é animador face ao que
nós tivemos nos nossos 514 anos mais recentes de história.
Fonte: Época Negócios/Dalmir Reis Jr.
Texto e foto reproduzidos do site: dalmirjunior.com.br/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário