HANNAH ARENDT - “Os maiores males não se devem àquele que tem de
confrontar-se consigo mesmo. Os maiores malfeitores são aqueles que
não se lembram porque nunca pensaram na questão” .
Foto: Getty Images/VEJA.
Publicado originalmente no site da Revista Veja, em
14/09/2013.
Educação.
Gustavo Ioschpe: devo educar meus filhos para serem éticos?
Por Gustavo Ioschpe.
Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saía de casa para a escola
numa manhã fria do inverno gaúcho. Chegando à portaria, meu pai interfonou,
perguntando se eu estava levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
qual. “O moletom amarelo, da Zugos”, respondi. Era mentira. Não estava levando
agasalho nenhum, mas estava com pressa, não queria me atrasar.
Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal moletom.
Não estava lá, nem em nenhum lugar da casa. Gelei. À noite, meu pai chegou em
casa de cara amarrada. Ao me ver, tirou da pasta de trabalho o moletom. E me
disse: “Eu não me importo que tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta
família, ninguém mente. Ponto. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi apenas um
episódio mais memorável de algo que foi o leitmotiv da minha formação familiar.
Meu pai era um obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade, honestidade,
código de conduta, escala de valores, menschkeit (firmeza de caráter, decência
fundamental, em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e exaustivamente
martelados na minha cabeça. Deu certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu
me sinto deslocado.
Até hoje chego pontualmente aos meus compromissos, e na
maioria das vezes fico esperando por interlocutores que se atrasam e nem se
desculpam (quinze minutos parece constituir uma “margem de erro” tolerável).
Até hoje acredito quando um prestador de serviço promete entregar o trabalho em
uma data, apenas para ficar exasperado pelo seu atraso, “veja bem”,
“imprevistos acontecem” etc. Fico revoltado sempre que pego um táxi em cidade
que não conheço e o motorista tenta me roubar. Detesto os colegas de trabalho
que fazem corpo mole, que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
Tenho cada vez menos visitado escolas públicas, porque não suporto mais ver
professores e diretores tratando alunos como estorvos que devem ser
controlados. Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao ler o noticiário
e saber que entre os governantes viceja um grupo de imorais que roubam com
criatividade e desfaçatez.
Sócrates, via Platão (A República, Livro IX), defende que o
homem que pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos, pois está em
conflito interno, em desarmonia consigo mesmo, perenemente acossado e
paralisado por medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma existência
desprezível, para sempre amarrado a alguém (sua própria consciência!)
onisciente que o condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas, nesse
caso acredito que ele foi excessivamente otimista. Hannah Arendt me parece ter
chegado mais perto da compreensão da perversidade humana ao notar, nos ensaios
reunidos no livro Responsabilidade e Julgamento, que esse desconforto interior
do “pecador” pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a sua
consciência, que na verdade não ocorre com a frequência desejada por Sócrates.
Escreve ela: “Tenho certeza de que os maiores males que conhecemos não se devem
àquele que tem de confrontar-se consigo mesmo de novo, e cuja maldição é não
poder esquecer. Os maiores malfeitores são aqueles que não se lembram porque
nunca pensaram na questão”. E, para aqueles que cometem o mal em uma escala
menor e o confrontam, Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por si
próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si próprio, muitas vezes não
funcionava, e a sua explicação era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica para os seus atos, algo
que justifique o porquê de uma determinada lei dever se aplicar a todos,
sempre, mas não a ele(a), ou pelo menos não naquele momento em que está
cometendo o seu delito.
Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das pessoas
honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo tranquilo”. Os escroques também! Se eles
tivessem dramas de consciência, se travassem um diálogo verdadeiro consigo e
seu travesseiro, ou não teriam optado por sua “carreira” ou já teriam se
suicidado. Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud chamou de superego:
seguimos um comportamento moral porque ele nos foi inculcado por nossos pais, e
renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
Na minha visão, só existem, assim, dois cenários em que é
objetivamente melhor ser ético do que não. O primeiro é se você é uma pessoa
religiosa e acredita que os pecados deste mundo serão punidos no próximo. Não é
o meu caso. O segundo é se você vive em uma sociedade ética em que os desvios
de comportamento são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
penais, quer na forma do ostracismo social. O que não é o caso do Brasil. Não
se sabe se De Gaulle disse ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
um país sério.
Assim é que, criando filhos brasileiros morando no Brasil,
estou às voltas com um deprimente dilema. Acredito que o papel de um pai é
preparar o seu filho para a vida. Essa é a nossa responsabilidade: dar a nossos
filhos os instrumentos para que naveguem, com segurança e destreza, pelas
dificuldades do mundo real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
axiomáticos, inquestionáveis. Eis aí o dilema: será que o melhor que poderia
fazer para preparar meus filhos para viver no Brasil seria não aprisioná-los na
cela da consciência, do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a ponto de incentivá-los a
serem escroques, mas poderia, como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a
essas questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar com atrasos, não
insistir para que não colem na escola, não instruir para que devolvam o troco
recebido a mais...
Tenho pensado bastante sobre isso ultimamente. Simplesmente
o fato de pensar a respeito, e de viver em um país em que existe um dilema
entre o ensino da ética e o bom exercício da paternidade, já é causa para
tristeza. Em última análise, decidi dar a meus filhos a mesma educação que
recebi de meu pai. Não porque ache que eles serão mais felizes assim - pelo
contrário -, nem porque acredite que, no fim, o bem compensa. Mas sim porque,
em primeiro lugar, não conseguiria conviver comigo mesmo, e com a memória de
meu pai, se criasse meus filhos para serem pessoas do tipo que ele me ensinou a
desprezar. E, segundo, tentando um esboço de resposta mais lógica, porque
sociedades e culturas mudam. Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos
eram antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um dia o Brasil há de
seguir o mesmo caminho, e aí a retidão que espero inculcar em meus filhos (e
meus filhos em seus filhos) há de ser uma vantagem, e não um fardo. Oxalá.
Texto e foto reproduzidos do site:
veja.abril.com.br/noticia/educacao
Nenhum comentário:
Postar um comentário